domingo, 14 de setembro de 2008

Episódio do inimigo (Jorge Luis Borges)

Tantos anos fugindo e esperando e agora o inimigo estava em minha casa. Da janela, vi-o subir penosamente pelo áspero caminho da colina. Ajudava-se com uma bengala, com uma torpe bengala que em velhas mãos não podia ser uma arma porém um báculo. Custou-me a perceber o que esperava: a débil batida na porta. Não sem nostalgia, olhei meus manuscritos, meu borrão semiconcluído e o tratado de Artemidoro sobre os sonhos, livro um tanto anômalo aí, uma vez que não sei grego. Outro dia perdido, pensei. Tive de forcejar com a chave. Receei que o homem desfalecesse, porém deu uns passos incertos, soltou a bengala, que não tornei a ver, e caiu em minha cama submisso. Minha ansiedade o tinha imaginado muitas vezes, mas só então notei que ele se parecia, de um modo quase fraternal, como o último retrato de Lincoln. Seriam as quatro da tarde.
Inclinei-me sobre ele para que me ouvisse.
- A gente crê que os anos passam para si - lhe disse - mas passam também para os demais. Aqui por fim nos encontramos e o que ocorreu antes não tem sentido.
Enquanto eu falava, ele tinha desabotoado o sobretudo. A mão direita estava no bolso do paletó. Algo apontava para mim e eu percebi que era um revólver.
Disse-me então com voz firme:
- Para entrar em sua casa, recorri à compaixão. Tenho-o agora à minha mercê e não sou misericordioso.
Tentei umas palavras. Não sou um homem forte e só as palavras poderiam salvar-me. Atinei em dizer:
- É verdade que faz tempo maltratei um menino, mas você já não é aquele menino nem eu aquele insensato. Além disso, a vingança não é menos vaidosa que o perdão.
- Precisamente porque já não sou aquele menino - replicou-me - tenho de matá-lo. Não se trata de uma vingança, mas de um ato de justiça. Seus argumentos, Borges, são meros estratagemas de seu terror para que eu não o mate. Você já não pode fazer nada.
- Posso fazer uma coisa - respondi-lhe.
- O quê? - perguntou-me.
- Despertar.
E assim o fiz.


Jorge Luis Borges Acevedo (Buenos Aires, 24 de Agosto de 1899 — Genebra, 14 de Junho de 1986) foi um escritor, poeta, tradutor, crítico e ensaísta argentino mundialmente conhecido por seus contos e histórias curtas.

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3 comentários:

lobo do cerrado disse...

Parece-me que Borges está falando dele mesmo, do menino que havia nele ou do menino que ele foi, maltratado, querendo se vingar do velho em que ele se tornou, mas o fim da infância e a velhice são inevitáveis, mesmo quando se sonha...

Rosita Ueno disse...

Tens razão, também vejo nesse conto o tema do "duplo" em Borges; que se ganha uma dimensão ainda maior ao ser o personagem também um Borges. O a abordagem do tema parece extrapolar as fronteiras do texto e confundir-se com a realidade do autor.
É certo, a velhice é inevitável, ainda que ninguém queira chegar a ela. Eu fico pensando no velho Borges (que foi velho desde sempre)e no culto à juventude dos nossos tempos... O que realmente permance?

leticia disse...

em uma das falas,é possível constatar que,nesse conto, o narrador e escritor são o mesmo personagem vc poderia reproduzir essa fala para mim por favor?!