segunda-feira, 26 de outubro de 2009

A CASA DE ASTÉRION

(Jorge Luis Borges)


E a rainha deu à luz um filho

Que se chamou Astérion.

APOLODORO: Biblioteca, III, I



Sei que me acusam de soberba, e talvez de misantropia, e talvez de loucura. Tais acusações (que castigarei ao seu devido tempo) são irrisórias. É verdade que não saio de minha casa, mas também é verdade que suas portas (cujo número é infinito*) estão abertas dia e noite aos homens e também aos animais. Que entre quem quiser. Não encontrará aqui pompas feminis nem o bizarro aparato dos palácios, mas sim a quietude e a solidão. Assim, encontrará uma casa como não há outra na face da Terra. (Mentem os que declaram que no Egito existe uma parecida). Até meus detratores admitem que não há um só móvel na casa. Outra história ridícula é que eu, Astérion, sou um prisioneiro. Repetirei que não há uma porta fechada, acrescentarei que não há uma fechadura? Além disso, num entardecer pisei a rua; se antes da noite voltei, fiz isso pelo temor que me infundiram os rostos da plebe, rostos descoloridos e achatados, como a mão aberta. Já se havia posto o sol, mas o desvalido choro de uma criança e as toscas preces da grei disseram que me haviam reconhecido. O povo orava, fugia, prosternava-se; alguns trepavam na estilóbata do templo dos Machados, outros juntavam pedras. Algum, creio, ocultou-se sob o mar. Não em vão foi uma rainha minha mãe; não posso confundir-me com o vulgo, ainda que minha modéstia o queira.


O Fato é que sou único. Não me interessa o que um homem possa transmitir a outros homens; como o filósofo, penso que nada é comunicável pela arte da escritura. As maçantes e triviais minúcias não têm espaço em meu espírito, que está capacitado para o grande; jamais reti a diferença entre uma letra e outra. Certa impaciência generosa não consentiu que eu aprendesse a ler. Às vezes o deploro, porque as noites e os dias são longos.


Claro que não me faltam distrações. Igual ao carneiro que vai investir, corro pelas galerias de pedra até rolar no chão, nauseado. Escondo-me à sombra de uma cisterna ou à volta de um corredor e finjo que me procuram. Existem terraços de onde me deixo cair até me ensangüentar. A qualquer hora posso fingir que estou adormecido, com os olhos fechados e a respiração poderosa. (Às vezes durmo realmente, às vezes está mudada a cor do dia quando abro os olhos.) Mas, de tantas brincadeiras, a que prefiro é a do outro Astérion. Finjo que vem visitar-me e que lhe mostro a casa. Com grandes reverências, digo-lhe: Agora voltamos à encruzilhada anterior ou Agora desembocamos em outro pátio ou Bem dizia eu que te agradaria o canalete ou Agora verás uma cisterna que se encheu de areia ou Já verás como o porão se bifurca. Às vezes me confundo e nos rimos agradavelmente os dois.


Não só tenho imaginado esses jogos; também tenho meditado sobre a casa. Todas as partes da casa existem muitas vezes, qualquer lugar é outro lugar. Não há uma cisterna, um pátio, um bebedouro, uma manjedoura; são quatorze [são infinitos] as manjedouras, bebedouros, pátios, cisternas. A casa é do tamanho do mundo; ou melhor, é o mundo. Contudo, à força de se fatigar em pátios com uma cisterna e poeirentas galerias de pedra cinza, alcancei a rua e vi o templo dos Machados e o mar. Não entendi isso até que uma visão da noite me revelou que também são quatorze [são infinitos] os mares e os templos. Tudo existe muitas vezes, quatorze vezes, mas duas coisas há no mundo que parecem existir uma só vez: acima, o intrincado Sol; abaixo, Astérion. Talvez eu tenha criado as estrelas e o Sol e a enorme casa, mas já não me recordo.


A cada nove anos entram na casa nove homens para que eu os liberte de todo mal. Ouço seus passos e sua voz no fundo das galerias de pedra e corro alegremente a procurá-los. A cerimônia dura poucos minutos. Um após outro caem sem que eu ensangüente as mãos. Onde caíram ficam, e os cadáveres ajudam a distinguir uma galeria das outras. Ignoro quem são, mas sei que um deles profetizou, na hora de sua morte, que algum dia chegaria o meu redentor. Desde então não me dói a solidão, porque sei que vive meu redentor e no fim se levantará sobre o pó. Se meu ouvido alcançasse todos os rumores do mundo, eu perceberia seus passos. Oxalá que me leve a um lugar com menos galerias e menos portas. Como será meu redentor? pergunto-me. Será um touro ou um homem? Será talvez um touro com rosto de homem? Ou será como eu?



O sol da manhã reverberou na espada de bronze. Já não havia nenhum vestígio de sangue.

– Acreditarás, Ariadne? – disse Teseu –. O minotauro apenas se defendeu.



À Marta Mosquera Eastman


*O original diz catorze, mas sobram motivos para inferir que, na boca de Astérion, esse adjetivo numeral vale por infinitos. (N. do A.)

(Tradução de Marcelo Bueno de Paula)

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Contos de fadas ou contos maravilhosos

Podem ou não incluir fadas
Têm origem na tradição cultural ocidental
Presença de alma coletiva
Pertencem à fase pré-literária
Historicamente, situam-se na transição das sociedades baseadas nos clãs (descendência comum), ainda nômades, para as sociedades agrícolas, sedentárias. Neste período entra em desuso os ritos de iniciação, mas permanecem os segredos
Apresentam as linhas básicas do destino humano: a evolução => nascimento => puberdade => amadurecimento => morte.
São formas de pensamento analógico, por vinculação, similitude, comparação
possuem elementos "atemporais" e não geográficos
Podem ser fábulas (incluir animais)
Incluem uma “moral ingênua”: os maus são punidos e os bons recompensados. Valorização da virtude (Perrault - 1695- em seu Prefácio, seria o primeiro a definir o uso ideológico dos contos de fadas)
Dizem respeito à uma jornada (humana): provas, virtudes testadas (do herói)
Possuem elementos estranhos e fora da lógica (a ave Fênix, o rei Midas, a caixa de Pandora, o fígado de Prometeu.
Presença de objetos mágicos
O maravilhoso é imprescindível – fadas e seres mitológicos intervêm na história
Imprecisão quanto ao tempo e lugar determinado
O trágico é ingênuo e há sempre um final feliz para o herói
Representam os ritos de iniciação
Inicialmente não eram contos infantis

Vladimir Propp, “A Morfologia dos Contos de Fadas” (1928)

Em “A Morfologia dos Contos de Fadas”, Propp estabelece os elementos narrativos básicos que ele identifica nos contos folclóricos russos. Basicamente, Propp identificou 7 classes de personagens (“agentes”), alguns estágios de evolução da narrativa e 31 funções narrativas das situações dramáticas. A linha narrativa que ele traça é fundamentalmente uma só para todos os contos, ainda que flexível.
Vejamos suas definições:
7 classes de personagens (“agentes”)
Os personagem são divididos segundo sua esfera de ação:
1ª Esfera – O Agressor – o que faz mal;
2ª Esfera – O Doador – o que dá o objeto mágico ao herói;
3ª Esfera – O Auxiliar – que ajuda o herói no seu percurso;
4ª Esfera – A Princesa e o Pai – não tem de ser obrigatoriamente o Rei;
5ª Esfera – O Mandador – aquele que manda;
6ª Esfera – O Herói;
7ª Esfera – O Falso Herói.

Propp fala em funções constantes dos personagens

1- Função de ausência ou partida de um membro da família
O Barba-Azul, chapeuzinho, A Bela Adormecida (os reis ausentes do palácio), Branca de Neve (morte da mãe)

2- Função de dar uma ordem
Não abrir o gabinete (O Barba-Azul)
Não usar o fuso (A bela adormecida)
Visitar a avó (Chapeuzinho)

3- Função de Ludibriar
Os passeios no campo por 8 dias (Barba-Azul)
O lobo que se finge de vovozinha
A madrinha que se transforma em velhinha e oferece a maçã

4- Função de salvação do herói
A mulher do Barba, pelos irmãos
Chapeuzinho (pelo lenhador/caçador)
A Bela (pelo príncipe)
Os irmãos (pelo polegar)

5- Função de punição do malvado
A morte do Barba
A morte do lobo[
As irmãs da Gata borralheira

Morfologia apresentada por Propp:
31 funções narrativas das situações dramáticas

1- DISTANCIAMENTO: um membro da família deixa o lar (o Herói é apresentado);
2- PROIBIÇÃO: uma interdição é feita ao Herói ('não vá lá', 'vá a este lugar');
3- INFRAÇÃO: a interdição é violada (o Vilão entra na história);
4- INVESTIGAÇÃO: o Vilão faz uma tentativa de aproximação/reconhecimento (ou tenta encontrar os filhos, as jóias, ou a vítima interroga o Vilão);
5- DELAÇÃO: o Vilão consegue informação sobre a vítima;
6- ARMADILHA: o Vilão tenta enganar a vítima para tomar posse dela ou de seus pertences (ou seus filhos); o Vilão está traiçoeiramente disfarçado para tentar ganhar confiança;
7- CONIVÊNCIA: a vítima deixa-se enganar e acaba ajudando o inimigo involuntariamente;
8- CULPA: o Vilão causa algum mal a um membro da família do Herói; alternativamente, um membro da família deseja ou sente falta de algo (poção mágica, etc.);
9- MEDIAÇÃO: o infortúnio ou a falta chegam ao conhecimento do Herói (ele é enviado a algum lugar, ouve pedidos de ajuda, etc.);
10- CONSENSO/CASTIGO: o Herói recebe uma sanção ou punição;
11- PARTIDA DO HERÓI: o Herói sai de casa;
12-SUBMISSÃO/PROVAÇÃO: o Herói é testado pelo Ajudante, preparado para seu aprendizado ou para receber a magia;
13- REAÇÃO: o Herói reage ao teste (falha/passa, realiza algum feito, etc.);
14- FORNECIMENTO DE MAGIA: o Herói adquire magia ou poderes mágicos;
15- TRANSFERÊNCIA: o Herói é transferido ou levado para perto do objeto de sua busca;
16- CONFRONTO: o Herói e o Vilão se enfrentam em combate direto;
17- HERÓI ASSINALADO: ganha uma cicatriz, ou marca, ou ferimento
18- VITÓRIA sobre o Antagonista
19- REMOÇÃO DO CASTIGO/CULPA: o infortúnio que o Vilão tinha provocado é desfeito;
20- RETORNO DO HERÓI: (a maior parte da narrativas termina aqui, mas Propp identifica uma possível continuação)
21- PERSEGUIÇÃO: o Herói é perseguido (ou sofre tentativa de assassinato);
22- O HERÓI SE SALVA, ou é resgatado da perseguição;
23- O HERÓI CHEGA INCÓGNITO EM CASA ou em outro país;
24- PRETENSÃO DO FALSO HERÓI, que finge ser o Herói;
25- PROVAÇÃO: ao Herói é imposto um dever difícil; (narrar o ocorrido)
26- EXECUÇÃO DO DEVER: o Herói é bem-sucedido;
27- RECONHECIMENTO DO HERÓI (pela marca/cicatriz que recebeu);
28- o Falso Herói é exposto/desmascarado;
29- TRANSFIGURAÇÃO DO HERÓI;
30- PUNIÇÃO DO ANTAGONISTA
31- NÚPCIAS DO HERÓI: o Herói se casa ou ascende ao trono.

Contos de fadas ou contos maravilhosos

Poder ou não incluir fadas
Têm origem na tradição cultural ocidental
Presença de alma coletiva
Pertencem à fase pré-literária
Historicamente, situam-se na transição das sociedades baseadas nos clãs (descendência comum), ainda nômades, para as sociedades agrícolas, sedentárias. Neste período entra em desuso os ritos de iniciação, mas permanecem os segredos
Apresentam as linhas básicas do destino humano: a evolução => nascimento => puberdade => amadurecimento => morte.
São formas de pensamento analógico, por vinculação, similitude
possuem elementos "atemporais"
Podem ser fábulas (incluir animais)
Incluem uma “moral ingênua”: os maus são punidos e os bons recompensados. Valorização da virtude (Perrault - 1695- em seu Prefácio, seria o primeiro a definir o uso ideológico dos contos de fadas)
Dizem respeito à uma jornada (humana): provas, virtudes testadas (do herói)
Possuem elementos estranhos e fora da lógica (a ave Fênix, o rei Midas, a caixa de Pandora, o fígado de Prometeu.
Presença de objetos mágicos
O maravilhoso é imprescindível – fadas e seres mitológicos intervêm na história
Imprecisão quanto ao tempo e lugar determinado
O trágico é ingênuo e há sempre um final feliz para o herói
Representam os ritos de iniciação
Inicialmente não eram contos infantis