segunda-feira, 24 de maio de 2010

UM DIA IDEAL PARA OS PEIXES-BANANA

J. D. Salinger
(EUA, 1953)

Noventa e sete agentes de publicidade de Nova York estavam hospedados no hotel e, do jeito que vinham monopolizando as linhas interurbanas, a moça do 507 teve de esperar do meio-dia até quase às duas e meia para completar sua ligação. Mas ela tratou de aproveitar bem o tempo. Leu um artigo numa revista feminina, intitulado "O Sexo é Divertido... ou um Inferno". Lavou o pente e a escova. Tirou uma mancha da saia do conjunto bege. Mudou de lugar um botão da blusa que comprara nas Lojas Saks. Arrancou dois cabelinhos que haviam acabado de aflorar numa verruga. Quando a telefonista afinal ligou para seu quarto, estava sentada no sofá ao lado da janela e quase terminado de pintar as unhas da mão esquerda.
Era uma dessas moças que não se afobam nem um pouquinho porque o telefone está tocando. Dava a impressão de que seu telefone estava chamando desde o dia em que atingira a puberdade.
Com o pincelzinho de esmalte - enquanto o telefone tocava – retocou a unha do dedo mínimo, acentuando a meia-lua. Feito isso, tampou o vidro de esmalte e, levantando-se, ficou abanando a mão esquerda para fazer o esmalte secar mais depressa. Com a outra mão apanhou de cima do sofá um cinzeiro cheio até a borda e o levou até a mesinha de cabeceira, onde estava o telefone. Sentou numa das camas-gêmeas, que a essa hora já estavam arrumadas, e - era a quinta ou sexta vez que o telefone tocava – levantou o fone do gancho.

- Alô - disse, mantendo os dedos da mão esquerda bem esten¬didos e afastados de seu robe de seda branca, que era tudo que estava vestindo, além dos chinelos. Os anéis estavam no banheiro.
- Sua ligação para Nova York está pronta, Sra. Glass - a telefo¬nista anunciou.
- Obrigada - a moça respondeu, abrindo lugar para o cinzeiro na mesinha de cabeceira.
Ouviu-se uma voz de mulher.
- Muriel? É você que está falando?
A moça afastou ligeiramente o fone do ouvido. - Sou eu sim, mamãe. Como vai você?
- Tenho estado preocupadíssima com você. Por que você não me telefonou? Você está bem?
- Tentei falar para você ontem à noite, e anteontem também. O telefone aqui tem andado...
- Você está bem, MurieI?
A moça aumentou a distância entre o fone e seu ouvido.
- Estou muito bem. Estou com calor. Hoje é o dia mais quente que faz na Flórida nos...
- Por que é que você não me telefonou? Tenho andado muitíssi¬mo preocupada...
- Mamãe, querida, não precisa gritar. Estou te ouvindo per¬feitamente. Telefonei duas vezes ontem de noite. A primeira vez logo depois...
- Eu disse a seu pai que você provavelmente ia telefonar ontem de noite. Mas não, ele tinha que... Você está bem, Muriel? Fala a ver¬dade.
- Estou ótima. Por favor, pára de ficar me perguntando isso.
- Quando é que vocês chegaram aí?
- Sei lá. Quarta-feira de manhã, bem cedinho.
- Quem é que dirigiu o carro?
- Foi ele - a moça respondeu. - E não precisa ficar toda nervosa. Ele dirigiu muito direitinho. Fiquei até espantada.
- Ele dirigiu? Muriel, você me deu sua palavra de...
- Mamãe - a moça interrompeu - já te disse. Ele dirigiu muito direitinho. O tempo todo a menos de cinqüenta, se te interessa saber.
- Ele tentou fazer aquela brincadeira com as árvores?
-Já disse que ele dirigiu muito bem, mamãe. Agora, por favor... Pedi a ele para ficar perto da linha branca e tudo, e ele entendeu o que eu queria dizer. E ficou. Procurou até não olhar para as árvores, dava pra se ver. Por falar nisso, papai já consertou o carro?
- Ainda não. Eles querem quatrocentos dólares só para...
- Mamãe, o Seymour disse a papai que pagava o conserto. Não há nenhuma razão para...
- Está bem, vamos ver. Como é que ele se comportou... no carro e tudo?
-Muito bem.
- Ele continuou a te chamar daquela coisa horrorosa...
- Não. Agora inventou outro troço.
-O quê?
- Ah, quê que interessa, mamãe?
- Muriel, eu quero saber. Seu pai...
- Tá bem, tá bem. Ele me chama de Miss Vagabunda Espiritual de 1948 - a moça disse, e deu uma risada.
- Não acho graça, Muriel, não acho a mínima graça. É horrível. Na verdade, é triste. Quando eu penso como...
- Mamãe - a moça interrompeu - Escuta. Você se lembra daquele livro que ele me mandou da Alemanha? Você sabe... aqueles poemas em alemão. Onde é que eu enfiei aquele livro? Tenho me danado de pensar...
- Está contigo.
- Tem certeza?
- Claro. Quer dizer, o livro está comigo. Está no quarto do
Freddy. Você deixou aqui e eu não tinha lugar na... Por quê? Ele está querendo o livro?
- Não. Só me perguntou sobre ele, quando estávamos vindo para cá. Queria saber se eu tinha lido.
- Mas era em alemão!
- Eu sei, querida. Isso não importa - disse a moça, cruzando as pernas. - Ele disse que os poemas foram escritos pelo único grande poeta deste século. Disse que eu devia ter comprado uma tradução ou coisa parecida. Ou ter feito o favor de aprender alemão.
- Horrível. Horrível. É triste, na verdade, isso é que é. Seu pai disse ontem à noite...
- Espera um instantinho, mamãe - a moça falou. F0i até a janela apanhar o maço de cigarros, acendeu um e voltou para seu lugar na cama.
- Mamãe? - ela falou, soltando a fumaça.
- Muriel. Escuta agora o que eu vou dizer.
- Estou ouvindo.
- Seu pai conversou com o Doutor Sivetski.
- Sei.
- Contou tudo a ele. Pelo menos me disse que contou... Você
sabe como é o seu pai. As árvores. Aquele negócio da janela. As coisas horrorosas que ele disse a sua avó, sobre os planos que ela fazia para morrer. O que ele fez com aquelas lindas fotografias das Bermudas... Tudo.
- Sei. E daí?
- Bem. Em primeiro lugar, o Doutor disse que foi um verdadeiro
crime o exército deixar ele sair do hospital... Palavra de honra. Disse a seu pai, com toda a clareza, que é possível - muito possível, foi o que ele disse - que o Seymour perca inteiramente o controle. Minha palavra de honra.
- Tem um psiquiatra aqui no hotel- a moça falou.
- Quem? Qual o nome dele?
- Sei lá. Rieser ou coisa parecida. Dizem que é muito bom.
- Nunca ouvi falar nele.
- Bem, apesar disso dizem que ele é muito bom.
- Muriel, não seja malcriada, por favor. Nós estamos muito preocupados com você. Seu pai queria te telegrafar ontem de noite, pedin¬do para você voltar pra casa.
- Eu não vou voltar para casa agora, mamãe. Por isso, trata de ficar calminha.
- Muriel. Palavra de honra, o Doutor Sivetski disse que o Seymour pode perder inteiramente o controle...
- Acabei de chegar aqui, mamãe. São minhas primeiras férias em muitos anos. Não vou agora fazer todas as malas e voltar para casa. De qualquer maneira, não ia mesmo poder viajar agora. Estou tão queimada que mal posso me mexer.
- Você se queimou muito? Não usou aquele vidro de óleo que botei na tua mala? Pus o vidro bem...
- Usei sim. E me queimei assim mesmo.
- Mas isso é horrível. Onde é que você está queimada?
- Em tudo quanto é lugar, querida, por todo lado.
- Isso é horrível.
- Não vou morrer por causa disso.
- Me diga, você conversou com o tal psiquiatra?
- Bem, mais ou menos - a moça respondeu.
- O que é que ele disse? Onde estava o Seymour quando você falou com ele?
- No Salão Oceano, tocando piano. Nessas duas noites, desde que chegamos aqui, ele tem tocado piano.
- Bom, o quê que ele disse?
- Ah, pouca coisa. Ele é que veio falar comigo. Eu estava sentada ao lado dele ontem à noite, no bingo, e ele me perguntou se não era o meu marido que estava tocando piano na outra sala. Disse que sim, que era, e ele me perguntou se o Seymour tinha andado doente ou coisa que o valha. Aí eu contei.
- Por que ele perguntou isso?
- Sei lá, mamãe. Acho que é porque ele está tão pálido e tudo. Seja como for, depois do bingo ele e a mulher me convidaram para tomar um drinque. Aí eu fui. A mulher dele era um horror. Você lembra daquele vestido de noite pavoroso que vimos na vitrina da Bonwit? Aquele que você disse que, para se usar, a gente tinha que ter uma...
- O verde?
- Esse mesmo. E olha que ela tinha umas cadeiras imensas. Ficou me perguntando se o Seymour era parente daquela tal de Suzanne Glass que tem uma chapelaria na Avenida Madison.
- Mas o que é que ele disse? O médico.
- Ah, bom, nada de mais, realmente. Quer dizer, estávamos no bar e tudo. Uma barulheira tremenda.
- Sei, mas você contou... contou o que ele tentou fazer com a cadeira de sua avó?
- Não, mamãe. Não entrei em detalhes. Provavelmente vou ter outra chance de conversar com ele. Ele passa o dia todo no bar.
- Ele falou se achava que era possível o Seymour ficar... você sabe... esquisito ou qualquer coisa assim? Fazer alguma coisa contigo?
- Não exatamente. Ele precisa saber de mais coisas, mamãe. Eles têm de conhecer a infância da gente e esse troço todo. Já te disse, mal podíamos conversar de tão barulhento que era o lugar.
- Bem. E o teu casaco azul?
- Ficou bom. Mandei tirar um pouco do enchimento.
- E como é que estão as roupas esse ano?
- Horrorosas. Mas pavorosas mesmo. A gente vê lantejoulas, tudo...
- E o quarto de vocês?
- Bonzinho. Quer dizer, razoável. Não conseguimos o quarto em que estivemos antes da guerra. A freqüência esse ano está péssima. Você devia ver as pessoas que sentam perto de nós na sala de jantar. Na mesa ao lado. Parece até que vieram para cá de caminhão.
- O que é que se vai fazer, é assim em todo lugar. E teu vestido de baile novo?
- Ficou muito comprido. Eu te falei que ia ficar comprido.
- Muriel, só vou te perguntar mais uma vez. Você está mesmo bem?
- Estou, mamãe. Pela nonagésima vez.
- E não quer voltar para casa?
- Não, mamãe.
- Seu pai disse ontem à noite que teria o maior prazer em te pagar uma viagem, se você quisesse ir a algum lugar sozinha, para pensar um pouco sobre isso tudo. Você bem que podia fazer uma bonita viagem de navio. Nós achamos...
- Não, obrigada - disse a moça, descruzando as pernas. ¬Mamãe, essa chamada vai custar uma for...
- Quando eu penso como você esperou por esse rapaz a guerra toda... Quando a gente pensa em todas essas mocinhas malucas que...
- Mamãe, é melhor nós desligarmos. O Seymour pode entrar a qualquer momento.
- Onde é que ele está?
- Na praia.
- Na praia? Sozinho? Ele se comporta direito na praia?
- Mamãe, você fala como se ele fosse um louco furioso...
- Eu não falei nada disso, Muriel.
- É, mas do jeito que você fala... Ele só fica deitado na areia. Sem tirar o roupão.
- Ele não tira o roupão? Por quê?
- Sei lá. Acho que é porque está tão branco.
- Meu Deus, mas ele precisa de sol. Será que você não consegue fazer ele tirar o roupão?
- Você conhece o Seymour - disse a moça, e cruzou as pernas outra vez. - Ele diz que não quer que um bando de idiotas fique olhando a tatuagem dele.
- Mas ele não tem nenhuma tatuagem! Ele arranjou alguma ta¬tuagem no exército?
- Não, mamãe. Não, minha querida - respondeu a moça, le¬vantando-se. - Escuta, talvez eu telefone para você amanhã.
- Muriel, agora presta atenção.
- Sim, mamãe - ela falou, pondo o peso do corpo sobre a perna direita.
- Me telefona no instante em que ele fizer, ou disser, qualquer coisa esquisita. Você sabe de quê que eu estou falando. Está me ouvindo?
- Mamãe, eu não tenho medo do Seymour.
- Muriel, quero que você me prometa.
- Tá bem, prometo. Até logo, mamãe. Dá um beijo no pai – ela disse, e desligou o telefone.
* * *
- Viu mais vidro? - disse Sybil Carpenter, que estava hospeda¬11.1 no hotel com sua mãe. - Viu mais vidro?*
- Queridinha, pára de dizer isso. Você está deixando sua mãezinha¬ maluca de tanto repetir isso. Agora fica quieta, por favor.
A Sra. Carpenter estava passando óleo de bronzear nos ombros de Sybil, espalhando-o em direção às costas, por sobre as delicadas espáduas que mais pareciam duas pequenas asas. Sybil estava precariamente equilibrada sobre uma grande bola de praia, de frente para o mar. Usava um maiô amarelo-canário de duas peças, uma das quais só seria realmente necessária dentro de uns nove ou dez anos.
- De fato, era só um lenço de seda comum. Dava para se ver, quando a gente chegava perto - falou a mulher que estava sentada numa espreguiçadeira de lona, ao lado da Sra. Carpenter. - Eu que¬ria saber é como ela amarrou o lenço. Estava uma gracinha.
- Devia estar mesmo - a Sra. Carpenter concordou. - Sybil, fica quieta, queridinha.
- Você viu mais vidro?
A Sra. Carpenter suspirou.
- Pronto - disse, fechando o vidro. - Agora, corre e vai brin¬car, meu bem. Mãezinha vai até o hotel tomar um martini com a Sra. Hubbel. Depois eu trago a azeitona para você.
Liberada, Sybil imediatamente correu para a parte lisa da praia e começou a andar na direção do Pavilhão dos Pescadores. Parando apenas para enfiar o pé num castelo em ruínas, já minado pela água do mar, em pouco tempo saíra da área reservada para os hóspedes do hotel.
Caminhou mais algumas centenas de metros e aí, de repente, disparou numa corrida oblíqua, subindo para onde a areia era macia. Parou de chofre quando chegou ao lugar onde um homem ainda moço estava deitado de costas.
- Você vai entrar n'água, viu mais vidro? - ela perguntou.
O rapaz teve um sobressalto, sua mão direita correndo para a gola do roupão. Virou-se de bruços, deixando cair a toalha enrolada que lhe cobria os olhos. Olhou para cima, em direção a Sybil.
- Ei. Como vai, Sybil?
- Você vai entrar n'água?
- Estava te esperando. Quê que há de novo?
- O quê? - Sybil perguntou.
- Quê que há de novo? Qual é a novidade no programa?
- Papai chega amanhã, num avião - ela respondeu, chutando a areia.
- Na minha cara não, queridinha - o rapaz disse, segurando o tornozelo de Sybil. - É, estava mesmo na hora do teu pai chegar. Tenho aguardado a chegada dele a cada minuto. A cada minuto.
- Onde é que está a moça? - Sybil disse.
-A moça?
O rapaz sacudiu um pouco da areia que se prendera a seus cabe¬los já ralos.
- Isso é difícil de dizer, Sybil. Ela pode estar em mil lugares. No cabeleireiro, pintando o cabelo cor de vison. Ou fazendo bonecas para as crianças pobres, no quarto dela.
Já agora deitado ao comprido, ele fechou as mãos e pôs uma sobre a outra, como apoio para o queixo.
- Me pergunta outra coisa, Sybil. Esse teu maiô é bonito. Se há uma coisa que eu gosto é de maiô azul.
Sybil olhou-o, espantada, e depois baixou os olhos em direção à sua barriguinha protuberante.
- Esse maiô é amarelo - ela falou. - É amarelo.
- É? Chega aqui mais perto.
Sybil avançou um passo.
- Você tem toda a razão. Sou mesmo um bobo.
- Você vai entrar n'água?
- Estou considerando seriamente essa possibilidade. Acho que você vai gostar de saber que estou pensando cuidadosamente no assunto, Sybil.
Sybil cutucou a bóia de borracha que o rapaz às vezes usava orno travesseiro.
- Tá precisando de ar - ela disse.
- Isso mesmo. Ela está mais precisada de ar do que eu estou disposto a admitir - falou, afastando as mãos e deixando o queixo repousar sobre a areia. - Sybil, você está muito bonita. Dá gosto te ver. Me fala sobre você.
Estendeu os braços para a frente e segurou os tornozelos da menina.
- Eu sou Capricórnio - ele falou. Quê que você é?
- A Sharon Lipschutz disse que você deixou ela sentar no banco do piano ao teu lado.
- A Sharon Lipschutz disse isso?
Sybil assentiu vigorosamente com a cabeça.
O rapaz soltou os tornozelos de Sybil, recolhendo as mãos, e deitou o lado do rosto sobre o antebraço direito.
- Bem, você sabe como são essas coisas, Sybil. Eu estava senta¬do lá, tocando. E você nem estava por perto. E a Sharon Lipschutz veio e se sentou ao meu lado. Eu não podia empurrar ela pra fora, podia?
- Podia.
- Ah, não. Não podia fazer isso. Mas eu te digo o que é que eu fiz.
-O quê?
- Fiz de conta que ela era você.
Sybil imediatamente curvou-se e começou a cavar a areia. - Vamos pra água - ela disse.
- Está bem. Acho que a gente pode dar um jeitinho nisso.
- Na próxima vez, empurra ela pra fora.
- Empurra quem pra fora?
- A Sharon Lipschutz.
- Ah, a Sharon Lipschutz. Como esse nome aparece a toda hora. Misturando memória e desejo.
O rapaz subitamente levantou-se. Olhou para o mar.
- Sybil, sabe o quê que nós vamos fazer? Vamos ver se pegamos um peixe-banana.
- Um quê?
- Um peixe-banana - ele disse, desfazendo o laço do cinto do roupão. Despiu o roupão. Tinha a pele muito branca, os ombros estrei¬tos, e usava um calção azul-pavão. Dobrou o roupão, em dois e em três. Desenrolou a toalha de que se servira para cobrir os olhos, esten¬deu-a sobre a areia e pôs sobre ela o roupão dobrado. Abaixou-se para pegar a bóia e enfiou-a sob o braço direito. Feito isso, deu a mão livre para Sybil e saíram andando em direção ao mar.
- Imagino que você já tenha visto muitos peixes-banana na tua vida - disse o rapaz.
Sybil fez que não com a cabeça.
- Não viu? Afinal, onde é que você mora?
-Não sei.
- Claro que sabe. Tem que saber. A Sharon Lipschutz sabe onde é que ela mora, e só tem três anos e meio.
Sybil parou e desprendeu-se, com um arranco, da mão dele.
Pegou uma concha comum de praia e examinou-a com exagerado interesse. Jogou-a fora.
- Whirly Wood, em Connecticut - ela disse, e recomeçou a andar, barriga estufada para a frente.
- Whirly Wood, em Connecticut - ele repetiu. - Será que, por acaso, essa cidade fica perto de Whirly Wood, em Connecticut?
Sybil olhou para ele.
- É lá que eu moro - falou, impaciente. - Eu moro em Whirly Wood, Connecticut.
Correu alguns passos à frente dele, agarrou o pé esquerdo com a mão esquerda e deu uns dois ou três pulos.
- Você não faz idéia como isso esclarece tudo - o rapaz disse. Sybil largou o pé e perguntou: - Você já leu "Sambo, o Negrinho"?
- Gozado você me perguntar isso. Acontece que eu acabei de ler esse livro ontem de noite - ele respondeu. Estendeu o braço e tomou novamente a mão de Sybil. - Você gostou?
- Os tigres todos ficaram correndo em volta daquela árvore?
- Pensei que nunca mais iam parar. Nunca vi tanto tigre.
- Tinha só seis - ela falou.
- Só seis! Você chama isso de só?
- Você gosta de cera? - Sybil perguntou.
- Gosto de quê?
- Cera.
- Gosto muito. Você não gosta?
Sybil concordou com a cabeça.
- Você gosta de azeitona? - Sybil perguntou.
- Azeitona? Adoro. Azeitona e cera. Nunca vou a lugar nenhum sem levar um estoque de azeitonas e cera.
- Você gosta da Sharon Lipschutz?
- Gosto. Gosto sim - o rapaz respondeu. - O que eu mais gosto nela é que ela nunca maltrata os cachorrinhos no saguão do hotel. Por exemplo, aquele buldoguezinho da moça do Canadá. Você provavelmente não vai me acreditar, mas algumas menininhas gostam de espetar aquele cachorrinho com um pedaço de pau. A Sharon não. Ela nunca faz nenhuma maldade. É por isso que eu gosto tanto dela.
Sybil ficou calada.
- Eu gosto de mastigar vela - ela disse, finalmente.
- Quem não gosta? - o rapaz falou, molhando os pés. - Opa! A água tá fria.
Jogou a bóia dentro d'água.
- Não, espera um instante, Sybil. Espera até a gente entrar mais um pouco.
Foram andando até a água atingir a cintura de Sybil. Aí o rapaz levantou-a e a deitou de bruços sobre a bóia.
- Você nunca usa uma touca de cabelo nem nada? - ele per¬guntou.
- Não me larga! - Sybil ordenou. - Agora me segura.
- Senhorita Carpenter, por favor. Eu entendo do riscado. Trata só de ficar olhando para ver se descobre algum peixe-banana. Hoje está fazendo um dia ideal para os peixes-banana.
- Não tou vendo nenhum - Sybil disse.
- Isso é compreensível. Eles têm uns hábitos muito estranhos- disse o rapaz, enquanto continuava a empurrar a bóia. A água ainda não chegava à altura de seu peito. - Levam uma vida muito trágica. Você sabe o quê que eles fazem?
Ela fez que não com a cabeça.
- Bem, eles entram nadando num buraco onde tem uma porção de bananas. São iguaizinhos a qualquer peixe normal quando entram, mas mal se vêem lá dentro eles se comportam como uns porcos. No duro. Já vi um peixe-banana entrar num buraco e comer setenta e oito bananas - ele falou. Empurrou a bóia e sua passageira um pouquinho mais em direção ao horizonte. - Naturalmente, depois disso eles ficam tão gordos que não conseguem mais sair do buraco. Não pas¬sam pela porta.
- Não vamos muito para longe, não - Sybil disse. - O quê que acontece com eles?
- O que acontece com quem?
- Com os peixes-banana.
- Ah, você quer dizer, depois que comem tantas bananas que não conseguem mais sair do buraco de banana?
-É.
- Bem, sinto muito dizer isso a você, Sybil. Eles morrem.
- Por quê?
- Porque pegam a febre da banana. É uma doença terrível.
- Aí vem uma onda - ela disse, nervosa.
- Vamos ignorá-la. Vamos esnobar essa onda - o rapaz falou. - Dois esnobes.
Segurou os tornozelos de Sybil e os empurrou para a frente e para baixo, fazendo a bóia deslizar por cima da crista da onda. A água empapou os cabelos louros de Sybil, mas o grito que ela deixou escapar veio carregado de prazer.
Quando a bóia voltou a estabilizar-se, ela afastou com a mão uma mecha de cabelos molhados que lhe caíra sobre os olhos e informou:
- Acabei de ver um.
- Viu o quê, meu bem?
- Um peixe-banana.
- Deus meu! Não diga! Ele estava com alguma banana na boca?
- Tava - ela respondeu. - Com seis.
O rapaz de repente segurou um dos pés molhados de Sybil, que pendia da beirada da bóia, e o beijou.
- Ei! - disse a proprietária do pé, virando-se para trás.
- Ei coisa nenhuma! Agora vamos voltar. Você já brincou bastante? -Não!
- Sinto muito - disse ele, e empurrou a bóia até a praia, onde Sybil desembarcou. Puxou a bóia até onde tinha deixado suas coisas.
- Té logo - ela falou, e correu sem remorso na direção do hotel. O rapaz vestiu o roupão, fechou cuidadosamente a gola e enfiou a toalha no bolso. Apanhou a bóia molhada e escorregadia, incômoda de carregar, e ajeitou-a sob o braço. Seguiu sozinho, devagar pela areia fofa e quente, a caminho do hotel.
No subsolo do hotel, por onde os banhistas eram obrigados a entrar, uma mulher com o nariz coberto de pomada tomou o elevador junto com o rapaz.
- Por que você está olhando para os meus pés? - ele lhe perguntou, quando o elevador se pôs em movimento.
- O que o senhor disse?
- Perguntei por que é que você está olhando para os meus pés.
- O senhor vai me desculpar, mas acontece que eu estava olhando para o chão - a mulher falou, e encarou a porta do elevador.
- Se quer olhar para a droga dos meus pés, diga logo. Mas não precisa ficar olhando escondido.
- Deixa eu saltar aqui mesmo, por favor - a mulher disse rapi¬damente para a ascensorista.
As portas se abriram e a mulher saiu, sem olhar para trás.
- Eu tenho dois pés normais, pomba, e não admito que ninguém fique olhando para eles - o rapaz falou. - Quinto, por favor.
Tirou a chave do bolso do roupão. Desceu no quinto andar, cami¬nhou ao longo do corredor e entrou no 507. O quarto cheirava a mala de couro nova e a removedor de esmalte de unhas.
Olhou de relance na direção da moça que dormia numa das camas-gêmeas. Caminhou até uma das malas, abriu-a e, sob uma pilha de roupas de baixo, apanhou uma Ortgies automática, calibre 7.65. Soltou o pente de balas, examinou-o e enfiou de novo no lugar. Armou a pistola. Feito isso, foi sentar-se na cama desocupada, olhou para a moça, apontou a pistola e deu um tiro em sua própria têmpora direita.

*N. dos T. – No original, see more glass, cuja pronúncia é idêntica à do nome do personagem principal, Seymour Glass.

SALINGER, J. D. Nove estórias. Tradução de Jório Dauster Magalhães e Silva e Álvaro Gurgel de Alencar. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 2003.

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

A CASA DE ASTÉRION

(Jorge Luis Borges)


E a rainha deu à luz um filho

Que se chamou Astérion.

APOLODORO: Biblioteca, III, I



Sei que me acusam de soberba, e talvez de misantropia, e talvez de loucura. Tais acusações (que castigarei ao seu devido tempo) são irrisórias. É verdade que não saio de minha casa, mas também é verdade que suas portas (cujo número é infinito*) estão abertas dia e noite aos homens e também aos animais. Que entre quem quiser. Não encontrará aqui pompas feminis nem o bizarro aparato dos palácios, mas sim a quietude e a solidão. Assim, encontrará uma casa como não há outra na face da Terra. (Mentem os que declaram que no Egito existe uma parecida). Até meus detratores admitem que não há um só móvel na casa. Outra história ridícula é que eu, Astérion, sou um prisioneiro. Repetirei que não há uma porta fechada, acrescentarei que não há uma fechadura? Além disso, num entardecer pisei a rua; se antes da noite voltei, fiz isso pelo temor que me infundiram os rostos da plebe, rostos descoloridos e achatados, como a mão aberta. Já se havia posto o sol, mas o desvalido choro de uma criança e as toscas preces da grei disseram que me haviam reconhecido. O povo orava, fugia, prosternava-se; alguns trepavam na estilóbata do templo dos Machados, outros juntavam pedras. Algum, creio, ocultou-se sob o mar. Não em vão foi uma rainha minha mãe; não posso confundir-me com o vulgo, ainda que minha modéstia o queira.


O Fato é que sou único. Não me interessa o que um homem possa transmitir a outros homens; como o filósofo, penso que nada é comunicável pela arte da escritura. As maçantes e triviais minúcias não têm espaço em meu espírito, que está capacitado para o grande; jamais reti a diferença entre uma letra e outra. Certa impaciência generosa não consentiu que eu aprendesse a ler. Às vezes o deploro, porque as noites e os dias são longos.


Claro que não me faltam distrações. Igual ao carneiro que vai investir, corro pelas galerias de pedra até rolar no chão, nauseado. Escondo-me à sombra de uma cisterna ou à volta de um corredor e finjo que me procuram. Existem terraços de onde me deixo cair até me ensangüentar. A qualquer hora posso fingir que estou adormecido, com os olhos fechados e a respiração poderosa. (Às vezes durmo realmente, às vezes está mudada a cor do dia quando abro os olhos.) Mas, de tantas brincadeiras, a que prefiro é a do outro Astérion. Finjo que vem visitar-me e que lhe mostro a casa. Com grandes reverências, digo-lhe: Agora voltamos à encruzilhada anterior ou Agora desembocamos em outro pátio ou Bem dizia eu que te agradaria o canalete ou Agora verás uma cisterna que se encheu de areia ou Já verás como o porão se bifurca. Às vezes me confundo e nos rimos agradavelmente os dois.


Não só tenho imaginado esses jogos; também tenho meditado sobre a casa. Todas as partes da casa existem muitas vezes, qualquer lugar é outro lugar. Não há uma cisterna, um pátio, um bebedouro, uma manjedoura; são quatorze [são infinitos] as manjedouras, bebedouros, pátios, cisternas. A casa é do tamanho do mundo; ou melhor, é o mundo. Contudo, à força de se fatigar em pátios com uma cisterna e poeirentas galerias de pedra cinza, alcancei a rua e vi o templo dos Machados e o mar. Não entendi isso até que uma visão da noite me revelou que também são quatorze [são infinitos] os mares e os templos. Tudo existe muitas vezes, quatorze vezes, mas duas coisas há no mundo que parecem existir uma só vez: acima, o intrincado Sol; abaixo, Astérion. Talvez eu tenha criado as estrelas e o Sol e a enorme casa, mas já não me recordo.


A cada nove anos entram na casa nove homens para que eu os liberte de todo mal. Ouço seus passos e sua voz no fundo das galerias de pedra e corro alegremente a procurá-los. A cerimônia dura poucos minutos. Um após outro caem sem que eu ensangüente as mãos. Onde caíram ficam, e os cadáveres ajudam a distinguir uma galeria das outras. Ignoro quem são, mas sei que um deles profetizou, na hora de sua morte, que algum dia chegaria o meu redentor. Desde então não me dói a solidão, porque sei que vive meu redentor e no fim se levantará sobre o pó. Se meu ouvido alcançasse todos os rumores do mundo, eu perceberia seus passos. Oxalá que me leve a um lugar com menos galerias e menos portas. Como será meu redentor? pergunto-me. Será um touro ou um homem? Será talvez um touro com rosto de homem? Ou será como eu?



O sol da manhã reverberou na espada de bronze. Já não havia nenhum vestígio de sangue.

– Acreditarás, Ariadne? – disse Teseu –. O minotauro apenas se defendeu.



À Marta Mosquera Eastman


*O original diz catorze, mas sobram motivos para inferir que, na boca de Astérion, esse adjetivo numeral vale por infinitos. (N. do A.)

(Tradução de Marcelo Bueno de Paula)

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Contos de fadas ou contos maravilhosos

Podem ou não incluir fadas
Têm origem na tradição cultural ocidental
Presença de alma coletiva
Pertencem à fase pré-literária
Historicamente, situam-se na transição das sociedades baseadas nos clãs (descendência comum), ainda nômades, para as sociedades agrícolas, sedentárias. Neste período entra em desuso os ritos de iniciação, mas permanecem os segredos
Apresentam as linhas básicas do destino humano: a evolução => nascimento => puberdade => amadurecimento => morte.
São formas de pensamento analógico, por vinculação, similitude, comparação
possuem elementos "atemporais" e não geográficos
Podem ser fábulas (incluir animais)
Incluem uma “moral ingênua”: os maus são punidos e os bons recompensados. Valorização da virtude (Perrault - 1695- em seu Prefácio, seria o primeiro a definir o uso ideológico dos contos de fadas)
Dizem respeito à uma jornada (humana): provas, virtudes testadas (do herói)
Possuem elementos estranhos e fora da lógica (a ave Fênix, o rei Midas, a caixa de Pandora, o fígado de Prometeu.
Presença de objetos mágicos
O maravilhoso é imprescindível – fadas e seres mitológicos intervêm na história
Imprecisão quanto ao tempo e lugar determinado
O trágico é ingênuo e há sempre um final feliz para o herói
Representam os ritos de iniciação
Inicialmente não eram contos infantis

Vladimir Propp, “A Morfologia dos Contos de Fadas” (1928)

Em “A Morfologia dos Contos de Fadas”, Propp estabelece os elementos narrativos básicos que ele identifica nos contos folclóricos russos. Basicamente, Propp identificou 7 classes de personagens (“agentes”), alguns estágios de evolução da narrativa e 31 funções narrativas das situações dramáticas. A linha narrativa que ele traça é fundamentalmente uma só para todos os contos, ainda que flexível.
Vejamos suas definições:
7 classes de personagens (“agentes”)
Os personagem são divididos segundo sua esfera de ação:
1ª Esfera – O Agressor – o que faz mal;
2ª Esfera – O Doador – o que dá o objeto mágico ao herói;
3ª Esfera – O Auxiliar – que ajuda o herói no seu percurso;
4ª Esfera – A Princesa e o Pai – não tem de ser obrigatoriamente o Rei;
5ª Esfera – O Mandador – aquele que manda;
6ª Esfera – O Herói;
7ª Esfera – O Falso Herói.

Propp fala em funções constantes dos personagens

1- Função de ausência ou partida de um membro da família
O Barba-Azul, chapeuzinho, A Bela Adormecida (os reis ausentes do palácio), Branca de Neve (morte da mãe)

2- Função de dar uma ordem
Não abrir o gabinete (O Barba-Azul)
Não usar o fuso (A bela adormecida)
Visitar a avó (Chapeuzinho)

3- Função de Ludibriar
Os passeios no campo por 8 dias (Barba-Azul)
O lobo que se finge de vovozinha
A madrinha que se transforma em velhinha e oferece a maçã

4- Função de salvação do herói
A mulher do Barba, pelos irmãos
Chapeuzinho (pelo lenhador/caçador)
A Bela (pelo príncipe)
Os irmãos (pelo polegar)

5- Função de punição do malvado
A morte do Barba
A morte do lobo[
As irmãs da Gata borralheira

Morfologia apresentada por Propp:
31 funções narrativas das situações dramáticas

1- DISTANCIAMENTO: um membro da família deixa o lar (o Herói é apresentado);
2- PROIBIÇÃO: uma interdição é feita ao Herói ('não vá lá', 'vá a este lugar');
3- INFRAÇÃO: a interdição é violada (o Vilão entra na história);
4- INVESTIGAÇÃO: o Vilão faz uma tentativa de aproximação/reconhecimento (ou tenta encontrar os filhos, as jóias, ou a vítima interroga o Vilão);
5- DELAÇÃO: o Vilão consegue informação sobre a vítima;
6- ARMADILHA: o Vilão tenta enganar a vítima para tomar posse dela ou de seus pertences (ou seus filhos); o Vilão está traiçoeiramente disfarçado para tentar ganhar confiança;
7- CONIVÊNCIA: a vítima deixa-se enganar e acaba ajudando o inimigo involuntariamente;
8- CULPA: o Vilão causa algum mal a um membro da família do Herói; alternativamente, um membro da família deseja ou sente falta de algo (poção mágica, etc.);
9- MEDIAÇÃO: o infortúnio ou a falta chegam ao conhecimento do Herói (ele é enviado a algum lugar, ouve pedidos de ajuda, etc.);
10- CONSENSO/CASTIGO: o Herói recebe uma sanção ou punição;
11- PARTIDA DO HERÓI: o Herói sai de casa;
12-SUBMISSÃO/PROVAÇÃO: o Herói é testado pelo Ajudante, preparado para seu aprendizado ou para receber a magia;
13- REAÇÃO: o Herói reage ao teste (falha/passa, realiza algum feito, etc.);
14- FORNECIMENTO DE MAGIA: o Herói adquire magia ou poderes mágicos;
15- TRANSFERÊNCIA: o Herói é transferido ou levado para perto do objeto de sua busca;
16- CONFRONTO: o Herói e o Vilão se enfrentam em combate direto;
17- HERÓI ASSINALADO: ganha uma cicatriz, ou marca, ou ferimento
18- VITÓRIA sobre o Antagonista
19- REMOÇÃO DO CASTIGO/CULPA: o infortúnio que o Vilão tinha provocado é desfeito;
20- RETORNO DO HERÓI: (a maior parte da narrativas termina aqui, mas Propp identifica uma possível continuação)
21- PERSEGUIÇÃO: o Herói é perseguido (ou sofre tentativa de assassinato);
22- O HERÓI SE SALVA, ou é resgatado da perseguição;
23- O HERÓI CHEGA INCÓGNITO EM CASA ou em outro país;
24- PRETENSÃO DO FALSO HERÓI, que finge ser o Herói;
25- PROVAÇÃO: ao Herói é imposto um dever difícil; (narrar o ocorrido)
26- EXECUÇÃO DO DEVER: o Herói é bem-sucedido;
27- RECONHECIMENTO DO HERÓI (pela marca/cicatriz que recebeu);
28- o Falso Herói é exposto/desmascarado;
29- TRANSFIGURAÇÃO DO HERÓI;
30- PUNIÇÃO DO ANTAGONISTA
31- NÚPCIAS DO HERÓI: o Herói se casa ou ascende ao trono.

Contos de fadas ou contos maravilhosos

Poder ou não incluir fadas
Têm origem na tradição cultural ocidental
Presença de alma coletiva
Pertencem à fase pré-literária
Historicamente, situam-se na transição das sociedades baseadas nos clãs (descendência comum), ainda nômades, para as sociedades agrícolas, sedentárias. Neste período entra em desuso os ritos de iniciação, mas permanecem os segredos
Apresentam as linhas básicas do destino humano: a evolução => nascimento => puberdade => amadurecimento => morte.
São formas de pensamento analógico, por vinculação, similitude
possuem elementos "atemporais"
Podem ser fábulas (incluir animais)
Incluem uma “moral ingênua”: os maus são punidos e os bons recompensados. Valorização da virtude (Perrault - 1695- em seu Prefácio, seria o primeiro a definir o uso ideológico dos contos de fadas)
Dizem respeito à uma jornada (humana): provas, virtudes testadas (do herói)
Possuem elementos estranhos e fora da lógica (a ave Fênix, o rei Midas, a caixa de Pandora, o fígado de Prometeu.
Presença de objetos mágicos
O maravilhoso é imprescindível – fadas e seres mitológicos intervêm na história
Imprecisão quanto ao tempo e lugar determinado
O trágico é ingênuo e há sempre um final feliz para o herói
Representam os ritos de iniciação
Inicialmente não eram contos infantis

domingo, 2 de novembro de 2008

Cegueira (Graciliano Ramos)

AFASTOU-ME da escola, atrasou-me, enquanto os filhos de seu José Galvão se internavam em grandes volumes coloridos, a doença de olhos que me perseguiu na meninice. Torturava-me semanas e semanas, eu vivia na treva, o rosto oculto num pano escuro, tropeçando nos móveis, guiando-me às apalpadelas, ao longo das paredes. As pálpebras inflamadas colavam-se. Para descerrá-las, eu ficava tempo sem fim mergulhando a cara na bacia de água, lavando-me vagarosamente, pois o contato dos dedos era doloroso em excesso. Finda a operação extensa, o espelho da sala de visitas mostrava-me dois bugalhos sangrentos, que se molhavam depressa e queriam esconder-se. Os objetos surgiam empastados e brumosos. Voltava a limpar-me sob o pano escuro, mas isto não atenuava o padecimento. Qualquer luz me deslumbrava, feria-me como pontas de agulhas. E as lágrimas corriam, engrossavam, solidificavam-se na pele vermelha e crestada. Necessário mexer-me à toa, em busca da bacia de água.
Sem dúvida o meu aspecto era desagradável, inspirava repugnância. E a gente da casa se impacientava. Minha mãe tinha a franqueza de manifestar-me viva antipatia. Dava-me dois apelidos: bezerro-encourado e cabra-cega.
Bezerro-encourado é um intruso. Quando uma cria morre, tiram-lhe o couro, vestem com ele um órfão, que, neste disfarce, é amamentado. A vaca sente o cheiro do filho, engana-se e adota o animal. Devo o apodo ao meu desarranjo, à feiúra, ao desengonço. Não havia roupa que me assentasse no corpo: a camisa tufava na barriga, as mangas se encurtavam ou alongavam, o paletó se alargava nas costas, enchia-se, como um balão. Na verdade o traje fora composto pela costureira módica, atarefada, pouco atenta às medidas. Todos os meninos, porém, usavam na vila fatiotas iguais, e conseguiam modificá-las, ajeitá-las. Eu aparentava pendurar nos ombros um casaco alheio. Bezerro-encourado. Mas não me fazia tolerar. Essa injúria revelou muito cedo a minha condição na família: comparado ao bicho infeliz, considerei-me um pupilo enfadonho, aceito a custo. Zanguei-me, permanecendo exteriormente calmo, depois serenei. Ninguém tinha culpa do meu desalinho, daqueles modos horríveis de cambembe. Censurando-me a inferioridade, talvez quisessem corrigir-me.
A outra alcunha era mais insultuosa que a primeira. Lembrava-me do jogo infantil e arreliava-me:
- Cabra-cega!
- Inhô.
- Donde vem?
- Do mundéu.
- Traz ouro ou prata?
- Ouro.

Largavam em seguida uma porcaria que tinha besouro como rima; se a resposta fosse prata, a indecência terminava em barata. Eu abominava os nomes sujos, a brincadeira imunda enojava-me. Não sabia por que me batizavam daquela forma. Se se referissem a um cavalo cego, não me ofenderiam tanto. Com certeza pensavam no diálogo, lançavam-me indiretamente as grosserias ligadas ao besouro e à barata. Aperreava-me, não esquecia o folguedo mortificante:
- Cabra-cega!
- Inhô.
- Donde vem?
- Do mundéu.

Ia até o fim, repisava mentalmente a safadeza que não ousava dizer em voz alta. Aquilo não era comigo, convencia-me de que minha mãe não tivera a idéia de juntar-me ao besouro e à barata. Se a oftalmia desaparecesse, a expressão vexatória desapareceria também, eu regressaria ao catecismo, às histórias do Barão de Macaúbas.
A doença estirava-se - e eu sofria duplamente os efeitos dela. Parece que se aborreciam por meu organismo teimar em conservar-se achacado e mofino. De fato não havia medicação, mas punham-me às vezes nos olhos uma cama¬da pegajosa de clara de ovo batida, imobilizavam-me na cama de lona. Isolavam o órgão deteriorado: a clara transformava-se numa espécie de resina, grudava as pestanas. Não me queixava nem gemia. Debaixo daquela máscara, as feridas resguardavam-se dos mosquitos, mas as dores eram atrozes, o calor imenso. Picadas multiplicavam-se: mãos invisíveis metiam-me pregos finos na cabeça. Tentava distrair-me ouvindo os sapos do açude da Penha. Os sapos só se explicavam de noite: durante o dia as vozes deles misturavam-se a outros rumores. Quando me permitiriam levantar-me, chegar ao lavatório de ferro, diluir a pasta seca pregada na minha cara? Lá iria capengando, tateando as paredes. Livre do terrível medicamento, voltaria à cama, o choro cairia manso.
Na escuridão percebi o valor enorme das palavras. Em dias de claridade e movimento entretinha-me a observar a loja e o armazém, percorria alguns metros do largo e alguns metros da rua da Palha, de casa para a escola, da escola para casa. Não conhecia a vila, mas certos pontos e certas figuras me despertavam a atenção, ganhavam relevo: a torre da igreja, residência de corujas, o quartel da polícia, o jardim e as mulheres que podavam roseiras, maravilhosa frontaria de azulejos, Filipe Benício, Teotônio Sabiá, José da Luz, d. Maria, Padre João Inácio. Nos arames bambos do telégrafo pousavam lavadeiras, enganchavam-se rabos de papagaios de papel. O portão, sempre fechado, nos separava do beco. No muro de tijolo vermelho passeavam lagartixas.
Agora a sombra espessa cobria tudo. O muro se desmoronava, como o outro se desmoronara anos atrás. De novo surgiam as plantas meio esvaídas, o descaroçador do Cavalo-Morto, nuvens de algodão esvoaçando. A igreja, os postes e os arames do telégrafo, aves e flores, a fachada luminosa, transeuntes, dissipavam-se, vagos e distantes: no rigor do verão envolviam-se numa densa garoa de inverno.
Mas os ruídos avultavam, todos os sons adquiriam sentido. Os passos revelavam as criaturas, quase se confundiam com elas: para bem dizer tinham forma, feições, e era-me possível saber de longe se estavam zangados ou satisfeitos. D. Conceição rezava o bendito na casa próxima: certamente calejava o espírito e os joelhos, adorando as litografias do oratório. Pedras de gamão estalavam à distância, dados chocalhavam, os parceiros gritavam números, excitados ou deprimidos. Ao ramerrão externo associava-se o caseiro: pedaços de conversas, lamúrias de criança, o chiar da água a ferver na chaleira, o crepitar das labaredas, a vibração do abano, o cochicho dos moleques. Os meus ouvidos aguçavam-se, reconstituíam frases indistintas, supriam lacunas - e isto encurtava ou alongava o tempo. Aos dois epítetos injuriosos uniam-se falas ásperas, que me atormentavam, agravavam as ferroadas dos mosquitos. Num sussurro, a voz de minha irmã feia e boa tinha ação entorpecente, deslizava branda pelas feridas, como penugem. As dores esmoreciam, as horas passavam rápidas.
Em falta desse enlevo, procurava anestesiar-me ouvindo as cantigas de minha mãe, duas cantigas desafinadas que a divertiam na fazenda. Provavelmente surgiram antes, mas foi lá que me inteirei delas. Continuaram na vila, durante alguns anos. Depois, quando nos mudamos para a cidade e melhoraram as condições econômicas, sumiram-se, por¬que o sentimento artístico de minha mãe se embotou ou por¬que se tornou mais exigente. Uma das poesias começava assim:
A letra A quer dizer - amada minha;
A letra B quer dizer - bela adorada;
A letra C quer dizer - casta mulher;
A letra D quer dizer - donzela amada;
A letra E quer dizer - és uma imagem;
A letra F quer dizer - formosa deusa.

Em vez de efe, minha mãe pronunciava fê, o que decerto convinha ao último verso, e rematava-o com formosa deus, pois não admitia divindade fêmea além da Virgem Maria. Insinuei-lhe mais tarde que também se podia usar efe. E a donzela amada era uma deusa, na opinião do poeta. Enjoou-se, considerou as novidades impertinências. A lengalenga se arrastava por todo o alfabeto. Quase todo o alfabeto: impossível encaixar a bela adorada no K e no Y.
A segunda composição referia-se a episódios da chegança, briga de mouros e crentes verdadeiros, mas tinha o nome de marujada e encerrava diversas interpolações. Acomodara-se a epopéia à cantiga.
Mestre piloto,
Onde está o seu juízo?
Por causa de sua cachaça
Todos nós estamos perdidos.

A cantora se interrompia, descrevia a cena: oficiais indignados, mestre piloto aos bordos, levando à boca o gargalo de uma garrafa. A agitação diminuía. Agora os marinheiros se esgoelavam:
O capitão cheira a cravo;
O mar-e guerra, a canela;
O pobre cozinheiro
Fede a tisna de panela
.
Aí havia uma deturpação: mar-de-guerra. Eu tinha idéia de mar, açude infinito, e imaginava guerra, barulho multiplicado, mas não chegava a perceber uma guerra dona do mar. Esquisito. Na comprida noite esforçava-me por decifrar esse desconchavo. O pensamento divagava, escorregava de um assunto a outro, buscava segurar-se a paredes negras.
Na rua da Palha, meninos cantavam a tabuada, adquiriam as virtudes teologais, fugiam dos inimigos da alma, detinham-se em bonitas estampas coloridas, recitavam o caso de uma ferradura achada, vendida, substituída por um cacho de cerejas. Quando a réstia chegasse ao risco do lápis que marcava duas horas, todos se levantariam, sairiam pelas ruas em algazarra. Nunca me agitaria assim.
Um dia as trevas se adelgaçavam, pedaços do mundo apareciam-me confusos na madrugada nebulosa. Queria fixar-me neles, cheios de alegria louca, a pestanejar furiosamente. Voltava às ocupações miúdas, às brincadeiras mornas e tranqüilas. Já não era cabra-cega. Mas permanecia bezerro-encourado. Em silêncio, resvalava na tristeza e no desânimo. Osório e Cecília falavam com segurança e clareza, liam depressa, distanciavam-se. Os meus desgraçados olhos vagueavam na página amarelada, molhavam os contos execráveis do Barão de Macaúbas. Os dedos emperrados manchavam-se• de tinta, sujavam o papel, traçavam garranchos ilegíveis fora das linhas. Não havia meio de ir para diante.
E meses depois, nova pausa, novo mergulho na sombra. Movia-me penosamente pelos cantos, infeliz e cabra-cega. Contentando-me com migalhas de sons, farrapos de imagens, dolorosos.

Um cinturção (Graciliano Ramos)

As minhas primeiras relações com a justiça foram dolorosas e deixaram-me funda impressão. Eu devia ter quatro ou cinco anos, por aí, e figurei na qualidade de réu. Certamente já me haviam feito representar esse papel, mas ninguém me dera a entender que se tratava de julgamento. Batiam-me porque podiam bater-me, e isto era natural.

Os golpes que recebi antes do caso do cinturão, puramente físicos, desapareciam quando findava a dor. Certa vez minha mãe surrou-me com urna corda nodosa que me pintou as costas de manchas sangrentas. Moído, virando a cabeça com dificuldade, eu distinguia nas costelas grandes lanhos vermelhos. Deitaram-me, enrolaram-me em panos molhados com água de sal - e houve uma discussão na família. Minha avó, que nos visitava, condenou o procedimento da filha e esta afligiu-se. Irritada, ferira-me à toa, sem querer. Não guardei ódio a minha mãe: o culpado era o nó. Se não fosse ele, a flagelação me haveria causado menor estrago. E estaria esquecida. A história do cinturão, que veio pouco depois, avivou-a.

Meu pai dormia na rede, armada na sala enorme. Tudo é nebuloso. Paredes extraordinariamente afastadas, rede infinita, os armadores longe, e meu pai acordando, levantando-se de mau humor, batendo com os chinelos no chão, a cara enferrujada. Naturalmente não me lembro da ferrugem, das rugas, da voz áspera, do tempo que ele consumiu rosnando uma exigência. Sei que estava bastante zangado, e isto me trouxe a covardia habitual. Desejei vê-lo dirigir-se a minha mãe e a José Baía, pessoas grandes, que não levavam pancada. Tentei ansiosamente fixar-me nessa esperança frágil. A força de meu pai encontraria resistência e gastar-se-ia em palavras.

Débil e ignorante, incapaz de conversa ou defesa, fui encolher-me num canto, para lá dos caixões verdes. Se o pavor não me segurasse tentaria escapulir-me: pela porta da frente chegaria ao açude, pela do corredor acharia o pé de turco. Devo ter pensado nisso, imóvel, atrás dos caixões. Só queria que minha mãe, sinhá Leopoldina, Amaro e José Baía surgissem de repente e me livrassem daquele perigo.

Ninguém veio, meu pai me descobriu acocorado e sem fôlego, colado ao muro, e arrancou-me dali violentamente, reclamando um cinturão. Onde estava o cinturão? Eu não sabia, mas era difícil explicar-me: atrapalhava-me, gaguejava, embrutecido, sem atinar com o motivo da raiva. Os modos brutais, coléricos, atavam-me; os ,sons duros morriam, desprovidos de significação.

Não consigo reproduzir toda a cena. Juntando vagas lembranças dela a fatos que se deram depois, imagino os berros de meu pai, a zanga terrível, a minha tremura infeliz. Provavelmente fui sacudido. O assombro gelava-me o sangue, escancarava-me os olhos.

Onde estava o cinturão? Impossível responder. Ainda que tivesse escondido o infame objeto, emudeceria, tão apavorado me achava. Situações deste gênero constituíram as maiores torturas da minha infância, e as conseqüências delas me acompanharam.

O homem não me perguntava se eu tinha guardado a miserável correia: ordenava que a entregasse imediatamente. Os seus gritos me entravam na cabeça, nunca ninguém se esgoelou de semelhante maneira.

Onde estava o cinturão? Hoje não posso ouvir uma pessoa falar alto. O coração bate-me forte, desanima, como se fosse parar, a voz emperra, a vista escurece, uma cólera doida agita coisas adormecidas cá dentro. A horrível sensação de que me furam os tímpanos com pontas de ferro.

Onde estava o cinturão? A pergunta repisada ficou-me na lembrança: parece que foi pregada a martelo.

A fúria louca ia aumentar, causar-me sério desgosto. Conservar-me-ia ali desmaiado, encolhido, movendo os dedos frios, os beiços trêmulos e silenciosos. Se o moleque José ou um cachorro entrasse na sala, talvez as pancadas se transferissem. O moleque e os cachorros eram inocentes, mas não se tratava disso. Responsabilizando qualquer deles, meu pai me esqueceria, deixar-me-ia fugir, esconder-me na beira do açude ou no quintal.

Minha mãe, José Baía, Amaro, sinhá Leopoldina, o moleque e os cachorros da fazenda abandonaram-me. Aperto na garganta, a casa a girar, o meu corpo a cair lento, voando, abelhas de todos os cortiços enchendo-me os ouvidos - e, nesse zunzum, a pergunta medonha. Náusea, sono. Onde estava o cinturão? Dormir muito, atrás dos caixões, livre do martírio.

Havia uma neblina, e não percebi direito os movimentos de meu pai. Não o vi aproximar-se do torno e pegar o chicote. A mão cabeluda prendeu-me, arrastou-me para o meio da sala, a folha de couro fustigou-me as costas. Uivos, alarido inútil, estertor. Já então eu devia saber que rogos e adulações exasperavam o algoz. Nenhum socorro. José Baía, meu amigo, era um pobre-diabo.

Achava-me num deserto. A casa escura, triste; as pessoas tristes. Penso com horror nesse ermo, recordo-me de cemitérios e de ruínas mal-assombradas. Cerravam-se as portas e as janelas, do teto negro pendiam teias de aranha. Nos quartos lúgubres minha irmãzinha engatinhava, começava a aprendizagem dolorosa.

Junto de mim, um homem furioso, segurando-me um braço, açoitando-me. Talvez as vergastadas não fossem muito fortes: comparadas ao que senti depois, quando me ensinaram a carta de A B C, valiam pouco. Certamente o meu choro, os saltos, as tentativas para rodopiar na sala como carrapeta eram menos um sinal de dor que a explosão do medo reprimido. Estivera sem bulir, quase sem respirar. Agora esvaziava os pulmões, movia-me, num desespero.

O suplício durou bastante, mas, por muito prolongado que tenha sido, não igualava a mortificação da fase preparatória: o olho duro a magnetizar-me, os gestos ameaçadores, a voz rouca a mastigar uma interrogação incompreensível.

Solto, fui enroscar-me perto dos caixões, coçar as pisaduras, engolir soluços, gemer baixinho e embalar-me com os gemidos. Antes de adormecer, cansado, vi meu pai dirigir-se à rede, afastar as varandas, sentar-se e logo se levantar, agarrando uma tira de sola, o maldito cinturão, a que desprendera a fivela quando se deitara. Resmungou e entrou a passear agitado. Tive a impressão de que ia falar-me: baixou a cabeça, a cara enrugada serenou, os olhos esmoreceram, procuraram o refúgio onde me abatia, aniquilado.

Pareceu-me que a figura imponente minguava - e a minha desgraça diminuiu. Se meu pai se tivesse chegado a mim, eu o teria recebido sem o arrepio que a presença dele sempre me deu. Não se aproximou: conservou-se longe, rondando, inquieto. Depois se afastou.

Sozinho, vi-o de novo cruel e forte, soprando, espumando. E ali permaneci, miúdo, insignificante, tão insignificante e miúdo como as aranhas que trabalhavam na telha negra.

Foi esse o primeiro contato que tive com a justiça.