domingo, 2 de novembro de 2008

Cegueira (Graciliano Ramos)

AFASTOU-ME da escola, atrasou-me, enquanto os filhos de seu José Galvão se internavam em grandes volumes coloridos, a doença de olhos que me perseguiu na meninice. Torturava-me semanas e semanas, eu vivia na treva, o rosto oculto num pano escuro, tropeçando nos móveis, guiando-me às apalpadelas, ao longo das paredes. As pálpebras inflamadas colavam-se. Para descerrá-las, eu ficava tempo sem fim mergulhando a cara na bacia de água, lavando-me vagarosamente, pois o contato dos dedos era doloroso em excesso. Finda a operação extensa, o espelho da sala de visitas mostrava-me dois bugalhos sangrentos, que se molhavam depressa e queriam esconder-se. Os objetos surgiam empastados e brumosos. Voltava a limpar-me sob o pano escuro, mas isto não atenuava o padecimento. Qualquer luz me deslumbrava, feria-me como pontas de agulhas. E as lágrimas corriam, engrossavam, solidificavam-se na pele vermelha e crestada. Necessário mexer-me à toa, em busca da bacia de água.
Sem dúvida o meu aspecto era desagradável, inspirava repugnância. E a gente da casa se impacientava. Minha mãe tinha a franqueza de manifestar-me viva antipatia. Dava-me dois apelidos: bezerro-encourado e cabra-cega.
Bezerro-encourado é um intruso. Quando uma cria morre, tiram-lhe o couro, vestem com ele um órfão, que, neste disfarce, é amamentado. A vaca sente o cheiro do filho, engana-se e adota o animal. Devo o apodo ao meu desarranjo, à feiúra, ao desengonço. Não havia roupa que me assentasse no corpo: a camisa tufava na barriga, as mangas se encurtavam ou alongavam, o paletó se alargava nas costas, enchia-se, como um balão. Na verdade o traje fora composto pela costureira módica, atarefada, pouco atenta às medidas. Todos os meninos, porém, usavam na vila fatiotas iguais, e conseguiam modificá-las, ajeitá-las. Eu aparentava pendurar nos ombros um casaco alheio. Bezerro-encourado. Mas não me fazia tolerar. Essa injúria revelou muito cedo a minha condição na família: comparado ao bicho infeliz, considerei-me um pupilo enfadonho, aceito a custo. Zanguei-me, permanecendo exteriormente calmo, depois serenei. Ninguém tinha culpa do meu desalinho, daqueles modos horríveis de cambembe. Censurando-me a inferioridade, talvez quisessem corrigir-me.
A outra alcunha era mais insultuosa que a primeira. Lembrava-me do jogo infantil e arreliava-me:
- Cabra-cega!
- Inhô.
- Donde vem?
- Do mundéu.
- Traz ouro ou prata?
- Ouro.

Largavam em seguida uma porcaria que tinha besouro como rima; se a resposta fosse prata, a indecência terminava em barata. Eu abominava os nomes sujos, a brincadeira imunda enojava-me. Não sabia por que me batizavam daquela forma. Se se referissem a um cavalo cego, não me ofenderiam tanto. Com certeza pensavam no diálogo, lançavam-me indiretamente as grosserias ligadas ao besouro e à barata. Aperreava-me, não esquecia o folguedo mortificante:
- Cabra-cega!
- Inhô.
- Donde vem?
- Do mundéu.

Ia até o fim, repisava mentalmente a safadeza que não ousava dizer em voz alta. Aquilo não era comigo, convencia-me de que minha mãe não tivera a idéia de juntar-me ao besouro e à barata. Se a oftalmia desaparecesse, a expressão vexatória desapareceria também, eu regressaria ao catecismo, às histórias do Barão de Macaúbas.
A doença estirava-se - e eu sofria duplamente os efeitos dela. Parece que se aborreciam por meu organismo teimar em conservar-se achacado e mofino. De fato não havia medicação, mas punham-me às vezes nos olhos uma cama¬da pegajosa de clara de ovo batida, imobilizavam-me na cama de lona. Isolavam o órgão deteriorado: a clara transformava-se numa espécie de resina, grudava as pestanas. Não me queixava nem gemia. Debaixo daquela máscara, as feridas resguardavam-se dos mosquitos, mas as dores eram atrozes, o calor imenso. Picadas multiplicavam-se: mãos invisíveis metiam-me pregos finos na cabeça. Tentava distrair-me ouvindo os sapos do açude da Penha. Os sapos só se explicavam de noite: durante o dia as vozes deles misturavam-se a outros rumores. Quando me permitiriam levantar-me, chegar ao lavatório de ferro, diluir a pasta seca pregada na minha cara? Lá iria capengando, tateando as paredes. Livre do terrível medicamento, voltaria à cama, o choro cairia manso.
Na escuridão percebi o valor enorme das palavras. Em dias de claridade e movimento entretinha-me a observar a loja e o armazém, percorria alguns metros do largo e alguns metros da rua da Palha, de casa para a escola, da escola para casa. Não conhecia a vila, mas certos pontos e certas figuras me despertavam a atenção, ganhavam relevo: a torre da igreja, residência de corujas, o quartel da polícia, o jardim e as mulheres que podavam roseiras, maravilhosa frontaria de azulejos, Filipe Benício, Teotônio Sabiá, José da Luz, d. Maria, Padre João Inácio. Nos arames bambos do telégrafo pousavam lavadeiras, enganchavam-se rabos de papagaios de papel. O portão, sempre fechado, nos separava do beco. No muro de tijolo vermelho passeavam lagartixas.
Agora a sombra espessa cobria tudo. O muro se desmoronava, como o outro se desmoronara anos atrás. De novo surgiam as plantas meio esvaídas, o descaroçador do Cavalo-Morto, nuvens de algodão esvoaçando. A igreja, os postes e os arames do telégrafo, aves e flores, a fachada luminosa, transeuntes, dissipavam-se, vagos e distantes: no rigor do verão envolviam-se numa densa garoa de inverno.
Mas os ruídos avultavam, todos os sons adquiriam sentido. Os passos revelavam as criaturas, quase se confundiam com elas: para bem dizer tinham forma, feições, e era-me possível saber de longe se estavam zangados ou satisfeitos. D. Conceição rezava o bendito na casa próxima: certamente calejava o espírito e os joelhos, adorando as litografias do oratório. Pedras de gamão estalavam à distância, dados chocalhavam, os parceiros gritavam números, excitados ou deprimidos. Ao ramerrão externo associava-se o caseiro: pedaços de conversas, lamúrias de criança, o chiar da água a ferver na chaleira, o crepitar das labaredas, a vibração do abano, o cochicho dos moleques. Os meus ouvidos aguçavam-se, reconstituíam frases indistintas, supriam lacunas - e isto encurtava ou alongava o tempo. Aos dois epítetos injuriosos uniam-se falas ásperas, que me atormentavam, agravavam as ferroadas dos mosquitos. Num sussurro, a voz de minha irmã feia e boa tinha ação entorpecente, deslizava branda pelas feridas, como penugem. As dores esmoreciam, as horas passavam rápidas.
Em falta desse enlevo, procurava anestesiar-me ouvindo as cantigas de minha mãe, duas cantigas desafinadas que a divertiam na fazenda. Provavelmente surgiram antes, mas foi lá que me inteirei delas. Continuaram na vila, durante alguns anos. Depois, quando nos mudamos para a cidade e melhoraram as condições econômicas, sumiram-se, por¬que o sentimento artístico de minha mãe se embotou ou por¬que se tornou mais exigente. Uma das poesias começava assim:
A letra A quer dizer - amada minha;
A letra B quer dizer - bela adorada;
A letra C quer dizer - casta mulher;
A letra D quer dizer - donzela amada;
A letra E quer dizer - és uma imagem;
A letra F quer dizer - formosa deusa.

Em vez de efe, minha mãe pronunciava fê, o que decerto convinha ao último verso, e rematava-o com formosa deus, pois não admitia divindade fêmea além da Virgem Maria. Insinuei-lhe mais tarde que também se podia usar efe. E a donzela amada era uma deusa, na opinião do poeta. Enjoou-se, considerou as novidades impertinências. A lengalenga se arrastava por todo o alfabeto. Quase todo o alfabeto: impossível encaixar a bela adorada no K e no Y.
A segunda composição referia-se a episódios da chegança, briga de mouros e crentes verdadeiros, mas tinha o nome de marujada e encerrava diversas interpolações. Acomodara-se a epopéia à cantiga.
Mestre piloto,
Onde está o seu juízo?
Por causa de sua cachaça
Todos nós estamos perdidos.

A cantora se interrompia, descrevia a cena: oficiais indignados, mestre piloto aos bordos, levando à boca o gargalo de uma garrafa. A agitação diminuía. Agora os marinheiros se esgoelavam:
O capitão cheira a cravo;
O mar-e guerra, a canela;
O pobre cozinheiro
Fede a tisna de panela
.
Aí havia uma deturpação: mar-de-guerra. Eu tinha idéia de mar, açude infinito, e imaginava guerra, barulho multiplicado, mas não chegava a perceber uma guerra dona do mar. Esquisito. Na comprida noite esforçava-me por decifrar esse desconchavo. O pensamento divagava, escorregava de um assunto a outro, buscava segurar-se a paredes negras.
Na rua da Palha, meninos cantavam a tabuada, adquiriam as virtudes teologais, fugiam dos inimigos da alma, detinham-se em bonitas estampas coloridas, recitavam o caso de uma ferradura achada, vendida, substituída por um cacho de cerejas. Quando a réstia chegasse ao risco do lápis que marcava duas horas, todos se levantariam, sairiam pelas ruas em algazarra. Nunca me agitaria assim.
Um dia as trevas se adelgaçavam, pedaços do mundo apareciam-me confusos na madrugada nebulosa. Queria fixar-me neles, cheios de alegria louca, a pestanejar furiosamente. Voltava às ocupações miúdas, às brincadeiras mornas e tranqüilas. Já não era cabra-cega. Mas permanecia bezerro-encourado. Em silêncio, resvalava na tristeza e no desânimo. Osório e Cecília falavam com segurança e clareza, liam depressa, distanciavam-se. Os meus desgraçados olhos vagueavam na página amarelada, molhavam os contos execráveis do Barão de Macaúbas. Os dedos emperrados manchavam-se• de tinta, sujavam o papel, traçavam garranchos ilegíveis fora das linhas. Não havia meio de ir para diante.
E meses depois, nova pausa, novo mergulho na sombra. Movia-me penosamente pelos cantos, infeliz e cabra-cega. Contentando-me com migalhas de sons, farrapos de imagens, dolorosos.

Um cinturção (Graciliano Ramos)

As minhas primeiras relações com a justiça foram dolorosas e deixaram-me funda impressão. Eu devia ter quatro ou cinco anos, por aí, e figurei na qualidade de réu. Certamente já me haviam feito representar esse papel, mas ninguém me dera a entender que se tratava de julgamento. Batiam-me porque podiam bater-me, e isto era natural.

Os golpes que recebi antes do caso do cinturão, puramente físicos, desapareciam quando findava a dor. Certa vez minha mãe surrou-me com urna corda nodosa que me pintou as costas de manchas sangrentas. Moído, virando a cabeça com dificuldade, eu distinguia nas costelas grandes lanhos vermelhos. Deitaram-me, enrolaram-me em panos molhados com água de sal - e houve uma discussão na família. Minha avó, que nos visitava, condenou o procedimento da filha e esta afligiu-se. Irritada, ferira-me à toa, sem querer. Não guardei ódio a minha mãe: o culpado era o nó. Se não fosse ele, a flagelação me haveria causado menor estrago. E estaria esquecida. A história do cinturão, que veio pouco depois, avivou-a.

Meu pai dormia na rede, armada na sala enorme. Tudo é nebuloso. Paredes extraordinariamente afastadas, rede infinita, os armadores longe, e meu pai acordando, levantando-se de mau humor, batendo com os chinelos no chão, a cara enferrujada. Naturalmente não me lembro da ferrugem, das rugas, da voz áspera, do tempo que ele consumiu rosnando uma exigência. Sei que estava bastante zangado, e isto me trouxe a covardia habitual. Desejei vê-lo dirigir-se a minha mãe e a José Baía, pessoas grandes, que não levavam pancada. Tentei ansiosamente fixar-me nessa esperança frágil. A força de meu pai encontraria resistência e gastar-se-ia em palavras.

Débil e ignorante, incapaz de conversa ou defesa, fui encolher-me num canto, para lá dos caixões verdes. Se o pavor não me segurasse tentaria escapulir-me: pela porta da frente chegaria ao açude, pela do corredor acharia o pé de turco. Devo ter pensado nisso, imóvel, atrás dos caixões. Só queria que minha mãe, sinhá Leopoldina, Amaro e José Baía surgissem de repente e me livrassem daquele perigo.

Ninguém veio, meu pai me descobriu acocorado e sem fôlego, colado ao muro, e arrancou-me dali violentamente, reclamando um cinturão. Onde estava o cinturão? Eu não sabia, mas era difícil explicar-me: atrapalhava-me, gaguejava, embrutecido, sem atinar com o motivo da raiva. Os modos brutais, coléricos, atavam-me; os ,sons duros morriam, desprovidos de significação.

Não consigo reproduzir toda a cena. Juntando vagas lembranças dela a fatos que se deram depois, imagino os berros de meu pai, a zanga terrível, a minha tremura infeliz. Provavelmente fui sacudido. O assombro gelava-me o sangue, escancarava-me os olhos.

Onde estava o cinturão? Impossível responder. Ainda que tivesse escondido o infame objeto, emudeceria, tão apavorado me achava. Situações deste gênero constituíram as maiores torturas da minha infância, e as conseqüências delas me acompanharam.

O homem não me perguntava se eu tinha guardado a miserável correia: ordenava que a entregasse imediatamente. Os seus gritos me entravam na cabeça, nunca ninguém se esgoelou de semelhante maneira.

Onde estava o cinturão? Hoje não posso ouvir uma pessoa falar alto. O coração bate-me forte, desanima, como se fosse parar, a voz emperra, a vista escurece, uma cólera doida agita coisas adormecidas cá dentro. A horrível sensação de que me furam os tímpanos com pontas de ferro.

Onde estava o cinturão? A pergunta repisada ficou-me na lembrança: parece que foi pregada a martelo.

A fúria louca ia aumentar, causar-me sério desgosto. Conservar-me-ia ali desmaiado, encolhido, movendo os dedos frios, os beiços trêmulos e silenciosos. Se o moleque José ou um cachorro entrasse na sala, talvez as pancadas se transferissem. O moleque e os cachorros eram inocentes, mas não se tratava disso. Responsabilizando qualquer deles, meu pai me esqueceria, deixar-me-ia fugir, esconder-me na beira do açude ou no quintal.

Minha mãe, José Baía, Amaro, sinhá Leopoldina, o moleque e os cachorros da fazenda abandonaram-me. Aperto na garganta, a casa a girar, o meu corpo a cair lento, voando, abelhas de todos os cortiços enchendo-me os ouvidos - e, nesse zunzum, a pergunta medonha. Náusea, sono. Onde estava o cinturão? Dormir muito, atrás dos caixões, livre do martírio.

Havia uma neblina, e não percebi direito os movimentos de meu pai. Não o vi aproximar-se do torno e pegar o chicote. A mão cabeluda prendeu-me, arrastou-me para o meio da sala, a folha de couro fustigou-me as costas. Uivos, alarido inútil, estertor. Já então eu devia saber que rogos e adulações exasperavam o algoz. Nenhum socorro. José Baía, meu amigo, era um pobre-diabo.

Achava-me num deserto. A casa escura, triste; as pessoas tristes. Penso com horror nesse ermo, recordo-me de cemitérios e de ruínas mal-assombradas. Cerravam-se as portas e as janelas, do teto negro pendiam teias de aranha. Nos quartos lúgubres minha irmãzinha engatinhava, começava a aprendizagem dolorosa.

Junto de mim, um homem furioso, segurando-me um braço, açoitando-me. Talvez as vergastadas não fossem muito fortes: comparadas ao que senti depois, quando me ensinaram a carta de A B C, valiam pouco. Certamente o meu choro, os saltos, as tentativas para rodopiar na sala como carrapeta eram menos um sinal de dor que a explosão do medo reprimido. Estivera sem bulir, quase sem respirar. Agora esvaziava os pulmões, movia-me, num desespero.

O suplício durou bastante, mas, por muito prolongado que tenha sido, não igualava a mortificação da fase preparatória: o olho duro a magnetizar-me, os gestos ameaçadores, a voz rouca a mastigar uma interrogação incompreensível.

Solto, fui enroscar-me perto dos caixões, coçar as pisaduras, engolir soluços, gemer baixinho e embalar-me com os gemidos. Antes de adormecer, cansado, vi meu pai dirigir-se à rede, afastar as varandas, sentar-se e logo se levantar, agarrando uma tira de sola, o maldito cinturão, a que desprendera a fivela quando se deitara. Resmungou e entrou a passear agitado. Tive a impressão de que ia falar-me: baixou a cabeça, a cara enrugada serenou, os olhos esmoreceram, procuraram o refúgio onde me abatia, aniquilado.

Pareceu-me que a figura imponente minguava - e a minha desgraça diminuiu. Se meu pai se tivesse chegado a mim, eu o teria recebido sem o arrepio que a presença dele sempre me deu. Não se aproximou: conservou-se longe, rondando, inquieto. Depois se afastou.

Sozinho, vi-o de novo cruel e forte, soprando, espumando. E ali permaneci, miúdo, insignificante, tão insignificante e miúdo como as aranhas que trabalhavam na telha negra.

Foi esse o primeiro contato que tive com a justiça.

Amor (Clarice Lispector)

Um pouco cansada, com as compras deformando o novo saco de tricô, Ana subiu no bonde. Depositou o volume no colo e o bonde começou a andar. Recostou-se então no banco procurando conforto, num suspiro de meia satisfação.

Os filhos de Ana eram bons, uma coisa verdadeira e sumarenta. Cresciam, tomavam banho, exigiam para si, malcriados, instantes cada vez mais completos. A cozinha era enfim espaçosa, o fogão enguiçado dava estouros. O calor era forte no apartamento que estavam aos poucos pagando. Mas o vento batendo nas cortinas que ela mesma cortara lembrava-lhe que se quisesse podia parar e enxugar a testa, olhando o calmo horizonte. Como um lavrador. Ela plantara as sementes que tinha na mão, não outras, mas essas apenas. E cresciam árvores. Crescia sua rápida conversa com o cobrador de luz, crescia a água enchendo o tanque, cresciam seus filhos, crescia a mesa com comidas, o marido chegando com os jornais e sorrindo de fome, o canto importuno das empregadas do edifício. Ana dava a tudo, tranqüilamente, sua mão pequena e forte, sua corrente de vida.

Certa hora da tarde era mais perigosa. Certa hora da tarde as árvores que plantara riam dela. Quando nada mais precisava de sua força, inquietava-se. No entanto sentia-se mais sólida do que nunca, seu corpo engrossara um pouco e era de se ver o modo como cortava blusas para os meninos, a grande tesoura dando estalidos na fazenda. Todo o seu desejo vagamente artístico encaminhara-se há muito no sentido de tornar os dias realizados e belos; com o tempo, seu gosto pelo decorativo se desenvolvera e suplantara a íntima desordem. Parecia ter descoberto que tudo era passível de aperfeiçoamento, a cada coisa se emprestaria uma aparência harmoniosa; a vida podia ser feita pela mão do homem.

No fundo, Ana sempre tivera necessidade de sentir a raiz firme das coisas. E isso um lar perplexamente lhe dera. Por caminhos tortos, viera a cair num destino de mulher, com a surpresa de nele caber como se o tivesse inventado. O homem com quem casara era um homem verdadeiro, os filhos que tivera eram filhos verdadeiros. Sua juventude anterior parecia-lhe estranha como uma doença de vida. Dela havia aos poucos emergido para descobrir que também sem a felicidade se vivia: abolindo-a, encontrara uma legião de pessoas, antes invisíveis, que viviam como quem trabalha — com persistência, continuidade, alegria. O que sucedera a Ana antes de ter o lar estava para sempre fora de seu alcance: uma exaltação perturbada que tantas vezes se confundira com felicidade insuportável. Criara em troca algo enfim compreensível, uma vida de adulto. Assim ela o quisera e o escolhera.

Sua precaução reduzia-se a tomar cuidado na hora perigosa da tarde, quando a casa estava vazia sem precisar mais dela, o sol alto, cada membro da família distribuído nas suas funções. Olhando os móveis limpos, seu coração se apertava um pouco em espanto. Mas na sua vida não havia lugar para que sentisse ternura pelo seu espanto — ela o abafava com a mesma habilidade que as lides em casa lhe haviam transmitido. Saía então para fazer compras ou levar objetos para consertar, cuidando do lar e da família à revelia deles. Quando voltasse era o fim da tarde e as crianças vindas do colégio exigiam-na. Assim chegaria a noite, com sua tranqüila vibração. De manhã acordaria aureolada pelos calmos deveres. Encontrava os móveis de novo empoeirados e sujos, como se voltassem arrependidos. Quanto a ela mesma, fazia obscuramente parte das raízes negras e suaves do mundo. E alimentava anonimamente a vida. Estava bom assim. Assim ela o quisera e escolhera.

O bonde vacilava nos trilhos, entrava em ruas largas. Logo um vento mais úmido soprava anunciando, mais que o fim da tarde, o fim da hora instável. Ana respirou profundamente e uma grande aceitação deu a seu rosto um ar de mulher.

O bonde se arrastava, em seguida estacava. Até Humaitá tinha tempo de descansar. Foi então que olhou para o homem parado no ponto.

A diferença entre ele e os outros é que ele estava realmente parado. De pé, suas mãos se mantinham avançadas. Era um cego.

O que havia mais que fizesse Ana se aprumar em desconfiança? Alguma coisa intranqüila estava sucedendo. Então ela viu: o cego mascava chicles... Um homem cego mascava chicles.

Ana ainda teve tempo de pensar por um segundo que os irmãos viriam jantar — o coração batia-lhe violento, espaçado. Inclinada, olhava o cego profundamente, como se olha o que não nos vê. Ele mascava goma na escuridão. Sem sofrimento, com os olhos abertos. O movimento da mastigação fazia-o parecer sorrir e de repente deixar de sorrir, sorrir e deixar de sorrir — como se ele a tivesse insultado, Ana olhava-o. E quem a visse teria a impressão de uma mulher com ódio. Mas continuava a olhá-lo, cada vez mais inclinada — o bonde deu uma arrancada súbita jogando-a desprevenida para trás, o pesado saco de tricô despencou-se do colo, ruiu no chão — Ana deu um grito, o condutor deu ordem de parada antes de saber do que se tratava — o bonde estacou, os passageiros olharam assustados.

Incapaz de se mover para apanhar suas compras, Ana se aprumava pálida. Uma expressão de rosto, há muito não usada, ressurgia-lhe com dificuldade, ainda incerta, incompreensível. O moleque dos jornais ria entregando-lhe o volume. Mas os ovos se haviam quebrado no embrulho de jornal. Gemas amarelas e viscosas pingavam entre os fios da rede. O cego interrompera a mastigação e avançava as mãos inseguras, tentando inutilmente pegar o que acontecia. O embrulho dos ovos foi jogado fora da rede e, entre os sorrisos dos passageiros e o sinal do condutor, o bonde deu a nova arrancada de partida.

Poucos instantes depois já não a olhavam mais. O bonde se sacudia nos trilhos e o cego mascando goma ficara atrás para sempre. Mas o mal estava feito.

A rede de tricô era áspera entre os dedos, não íntima como quando a tricotara. A rede perdera o sentido e estar num bonde era um fio partido; não sabia o que fazer com as compras no colo. E como uma estranha música, o mundo recomeçava ao redor. O mal estava feito. Por quê? Teria esquecido de que havia cegos? A piedade a sufocava, Ana respirava pesadamente. Mesmo as coisas que existiam antes do acontecimento estavam agora de sobreaviso, tinham um ar mais hostil, perecível... O mundo se tornara de novo um mal-estar. Vários anos ruíam, as gemas amarelas escorriam. Expulsa de seus próprios dias, parecia-lhe que as pessoas da rua eram periclitantes, que se mantinham por um mínimo equilíbrio à tona da escuridão — e por um momento a falta de sentido deixava-as tão livres que elas não sabiam para onde ir. Perceber uma ausência de lei foi tão súbito que Ana se agarrou ao banco da frente, como se pudesse cair do bonde, como se as coisas pudessem ser revertidas com a mesma calma com que não o eram.

O que chamava de crise viera afinal. E sua marca era o prazer intenso com que olhava agora as coisas, sofrendo espantada. O calor se tornara mais abafado, tudo tinha ganho uma força e vozes mais altas. Na Rua Voluntários da Pátria parecia prestes a rebentar uma revolução, as grades dos esgotos estavam secas, o ar empoeirado. Um cego mascando chicles mergulhara o mundo em escura sofreguidão. Em cada pessoa forte havia a ausência de piedade pelo cego e as pessoas assustavam-na com o vigor que possuíam. Junto dela havia uma senhora de azul, com um rosto. Desviou o olhar, depressa. Na calçada, uma mulher deu um empurrão no filho! Dois namorados entrelaçavam os dedos sorrindo... E o cego? Ana caíra numa bondade extremamente dolorosa.

Ela apaziguara tão bem a vida, cuidara tanto para que esta não explodisse. Mantinha tudo em serena compreensão, separava uma pessoa das outras, as roupas eram claramente feitas para serem usadas e podia-se escolher pelo jornal o filme da noite - tudo feito de modo a que um dia se seguisse ao outro. E um cego mascando goma despedaçava tudo isso. E através da piedade aparecia a Ana uma vida cheia de náusea doce, até a boca.

Só então percebeu que há muito passara do seu ponto de descida. Na fraqueza em que estava, tudo a atingia com um susto; desceu do bonde com pernas débeis, olhou em torno de si, segurando a rede suja de ovo. Por um momento não conseguia orientar-se. Parecia ter saltado no meio da noite.

Era uma rua comprida, com muros altos, amarelos. Seu coração batia de medo, ela procurava inutilmente reconhecer os arredores, enquanto a vida que descobrira continuava a pulsar e um vento mais morno e mais misterioso rodeava-lhe o rosto. Ficou parada olhando o muro. Enfim pôde localizar-se. Andando um pouco mais ao longo de uma sebe, atravessou os portões do Jardim Botânico.

Andava pesadamente pela alameda central, entre os coqueiros. Não havia ninguém no Jardim. Depositou os embrulhos na terra, sentou-se no banco de um atalho e ali ficou muito tempo.

A vastidão parecia acalmá-la, o silêncio regulava sua respiração. Ela adormecia dentro de si.

De longe via a aléia onde a tarde era clara e redonda. Mas a penumbra dos ramos cobria o atalho.

Ao seu redor havia ruídos serenos, cheiro de árvores, pequenas surpresas entre os cipós. Todo o Jardim triturado pelos instantes já mais apressados da tarde. De onde vinha o meio sonho pelo qual estava rodeada? Como por um zunido de abelhas e aves. Tudo era estranho, suave demais, grande demais.

Um movimento leve e íntimo a sobressaltou — voltou-se rápida. Nada parecia se ter movido. Mas na aléia central estava imóvel um poderoso gato. Seus pêlos eram macios. Em novo andar silencioso, desapareceu.

Inquieta, olhou em torno. Os ramos se balançavam, as sombras vacilavam no chão. Um pardal ciscava na terra. E de repente, com mal-estar, pareceu-lhe ter caído numa emboscada. Fazia-se no Jardim um trabalho secreto do qual ela começava a se aperceber.

Nas árvores as frutas eram pretas, doces como mel. Havia no chão caroços secos cheios de circunvoluções, como pequenos cérebros apodrecidos. O banco estava manchado de sucos roxos. Com suavidade intensa rumorejavam as águas. No tronco da árvore pregavam-se as luxuosas patas de uma aranha. A crueza do mundo era tranqüila. O assassinato era profundo. E a morte não era o que pensávamos.

Ao mesmo tempo que imaginário — era um mundo de se comer com os dentes, um mundo de volumosas dálias e tulipas. Os troncos eram percorridos por parasitas folhudas, o abraço era macio, colado. Como a repulsa que precedesse uma entrega — era fascinante, a mulher tinha nojo, e era fascinante.

As árvores estavam carregadas, o mundo era tão rico que apodrecia. Quando Ana pensou que havia crianças e homens grandes com fome, a náusea subiu-lhe à garganta, como se ela estivesse grávida e abandonada. A moral do Jardim era outra. Agora que o cego a guiara até ele, estremecia nos primeiros passos de um mundo faiscante, sombrio, onde vitórias-régias boiavam monstruosas. As pequenas flores espalhadas na relva não lhe pareciam amarelas ou rosadas, mas cor de mau ouro e escarlates. A decomposição era profunda, perfumada... Mas todas as pesadas coisas, ela via com a cabeça rodeada por um enxame de insetos enviados pela vida mais fina do mundo. A brisa se insinuava entre as flores. Ana mais adivinhava que sentia o seu cheiro adocicado... O Jardim era tão bonito que ela teve medo do Inferno.

Era quase noite agora e tudo parecia cheio, pesado, um esquilo voou na sombra. Sob os pés a terra estava fofa, Ana aspirava-a com delícia. Era fascinante, e ela sentia nojo.

Mas quando se lembrou das crianças, diante das quais se tornara culpada, ergueu-se com uma exclamação de dor. Agarrou o embrulho, avançou pelo atalho obscuro, atingiu a alameda. Quase corria — e via o Jardim em torno de si, com sua impersonalidade soberba. Sacudiu os portões fechados, sacudia-os segurando a madeira áspera. O vigia apareceu espantado de não a ter visto.

Enquanto não chegou à porta do edifício, parecia à beira de um desastre. Correu com a rede até o elevador, sua alma batia-lhe no peito — o que sucedia? A piedade pelo cego era tão violenta como uma ânsia, mas o mundo lhe parecia seu, sujo, perecível, seu. Abriu a porta de casa. A sala era grande, quadrada, as maçanetas brilhavam limpas, os vidros da janela brilhavam, a lâmpada brilhava — que nova terra era essa? E por um instante a vida sadia que levara até agora pareceu-lhe um modo moralmente louco de viver. O menino que se aproximou correndo era um ser de pernas compridas e rosto igual ao seu, que corria e a abraçava. Apertou-o com força, com espanto. Protegia-se tremula. Porque a vida era periclitante. Ela amava o mundo, amava o que fora criado — amava com nojo. Do mesmo modo como sempre fora fascinada pelas ostras, com aquele vago sentimento de asco que a aproximação da verdade lhe provocava, avisando-a. Abraçou o filho, quase a ponto de machucá-lo. Como se soubesse de um mal — o cego ou o belo Jardim Botânico? — agarrava-se a ele, a quem queria acima de tudo. Fora atingida pelo demônio da fé. A vida é horrível, disse-lhe baixo, faminta. O que faria se seguisse o chamado do cego? Iria sozinha... Havia lugares pobres e ricos que precisavam dela. Ela precisava deles... Tenho medo, disse. Sentia as costelas delicadas da criança entre os braços, ouviu o seu choro assustado. Mamãe, chamou o menino. Afastou-o, olhou aquele rosto, seu coração crispou-se. Não deixe mamãe te esquecer, disse-lhe. A criança mal sentiu o abraço se afrouxar, escapou e correu até a porta do quarto, de onde olhou-a mais segura. Era o pior olhar que jamais recebera. Q sangue subiu-lhe ao rosto, esquentando-o.

Deixou-se cair numa cadeira com os dedos ainda presos na rede. De que tinha vergonha?

Não havia como fugir. Os dias que ela forjara haviam-se rompido na crosta e a água escapava. Estava diante da ostra. E não havia como não olhá-la. De que tinha vergonha? É que já não era mais piedade, não era só piedade: seu coração se enchera com a pior vontade de viver.

Já não sabia se estava do lado do cego ou das espessas plantas. O homem pouco a pouco se distanciara e em tortura ela parecia ter passado para o lados que lhe haviam ferido os olhos. O Jardim Botânico, tranqüilo e alto, lhe revelava. Com horror descobria que pertencia à parte forte do mundo — e que nome se deveria dar a sua misericórdia violenta? Seria obrigada a beijar um leproso, pois nunca seria apenas sua irmã. Um cego me levou ao pior de mim mesma, pensou espantada. Sentia-se banida porque nenhum pobre beberia água nas suas mãos ardentes. Ah! era mais fácil ser um santo que uma pessoa! Por Deus, pois não fora verdadeira a piedade que sondara no seu coração as águas mais profundas? Mas era uma piedade de leão.

Humilhada, sabia que o cego preferiria um amor mais pobre. E, estremecendo, também sabia por quê. A vida do Jardim Botânico chamava-a como um lobisomem é chamado pelo luar. Oh! mas ela amava o cego! pensou com os olhos molhados. No entanto não era com este sentimento que se iria a uma igreja. Estou com medo, disse sozinha na sala. Levantou-se e foi para a cozinha ajudar a empregada a preparar o jantar.

Mas a vida arrepiava-a, como um frio. Ouvia o sino da escola, longe e constante. O pequeno horror da poeira ligando em fios a parte inferior do fogão, onde descobriu a pequena aranha. Carregando a jarra para mudar a água - havia o horror da flor se entregando lânguida e asquerosa às suas mãos. O mesmo trabalho secreto se fazia ali na cozinha. Perto da lata de lixo, esmagou com o pé a formiga. O pequeno assassinato da formiga. O mínimo corpo tremia. As gotas d'água caíam na água parada do tanque. Os besouros de verão. O horror dos besouros inexpressivos. Ao redor havia uma vida silenciosa, lenta, insistente. Horror, horror. Andava de um lado para outro na cozinha, cortando os bifes, mexendo o creme. Em torno da cabeça, em ronda, em torno da luz, os mosquitos de uma noite cálida. Uma noite em que a piedade era tão crua como o amor ruim. Entre os dois seios escorria o suor. A fé a quebrantava, o calor do forno ardia nos seus olhos.

Depois o marido veio, vieram os irmãos e suas mulheres, vieram os filhos dos irmãos.

Jantaram com as janelas todas abertas, no nono andar. Um avião estremecia, ameaçando no calor do céu. Apesar de ter usado poucos ovos, o jantar estava bom. Também suas crianças ficaram acordadas, brincando no tapete com as outras. Era verão, seria inútil obrigá-las a dormir. Ana estava um pouco pálida e ria suavemente com os outros. Depois do jantar, enfim, a primeira brisa mais fresca entrou pelas janelas. Eles rodeavam a mesa, a família. Cansados do dia, felizes em não discordar, tão dispostos a não ver defeitos. Riam-se de tudo, com o coração bom e humano. As crianças cresciam admiravelmente em torno deles. E como a uma borboleta, Ana prendeu o instante entre os dedos antes que ele nunca mais fosse seu.

Depois, quando todos foram embora e as crianças já estavam deitadas, ela era uma mulher bruta que olhava pela janela. A cidade estava adormecida e quente. O que o cego desencadeara caberia nos seus dias? Quantos anos levaria até envelhecer de novo? Qualquer movimento seu e pisaria numa das crianças. Mas com uma maldade de amante, parecia aceitar que da flor saísse o mosquito, que as vitórias-régias boiassem no escuro do lago. O cego pendia entre os frutos do Jardim Botânico.

Se fora um estouro do fogão, o fogo já teria pegado em toda a casa! pensou correndo para a cozinha e deparando com o seu marido diante do café derramado.

— O que foi?! gritou vibrando toda.

Ele se assustou com o medo da mulher. E de repente riu entendendo:

— Não foi nada, disse, sou um desajeitado. Ele parecia cansado, com olheiras.

Mas diante do estranho rosto de Ana, espiou-a com maior atenção. Depois atraiu-a a si, em rápido afago.

— Não quero que lhe aconteça nada, nunca! disse ela.

— Deixe que pelo menos me aconteça o fogão dar um estouro, respondeu ele sorrindo.

Ela continuou sem força nos seus braços. Hoje de tarde alguma coisa tranqüila se rebentara, e na casa toda havia um tom humorístico, triste. É hora de dormir, disse ele, é tarde. Num gesto que não era seu, mas que pareceu natural, segurou a mão da mulher, levando-a consigo sem olhar para trás, afastando-a do perigo de viver.

Acabara-se a vertigem de bondade.

E, se atravessara o amor e o seu inferno, penteava-se agora diante do espelho, por um instante sem nenhum mundo no coração. Antes de se deitar, como se apagasse uma vela, soprou a pequena flama do dia.


Texto extraído no livro “Laços de Família”, Editora Rocco – Rio de Janeiro, 1998, pág. 19, incluído entre “Os cem melhores contos brasileiros do século”, Editora Objetiva – Rio de Janeiro, 2000, seleção de Ítalo Moriconi.

Clarice Lispector: tudo sobre a autora e sua obra em "Biografias".

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Uma Galinha (Clarice Lispector)

Era uma galinha de domingo. Ainda viva porque não passava de nove horas da manhã.

Parecia calma. Desde sábado encolhera-se num canto da cozinha. Não olhava para ninguém, ninguém olhava para ela. Mesmo quando a escolheram, apalpando sua intimidade com indiferença, não souberam dizer se era gorda ou magra. Nunca se adivinharia nela um anseio.

Foi pois uma surpresa quando a viram abrir as asas de curto vôo, inchar o peito e, em dois ou três lances, alcançar a murada do terraço. Um instante ainda vacilou — o tempo da cozinheira dar um grito — e em breve estava no terraço do vizinho, de onde, em outro vôo desajeitado, alcançou um telhado. Lá ficou em adorno deslocado, hesitando ora num, ora noutro pé. A família foi chamada com urgência e consternada viu o almoço junto de uma chaminé. O dono da casa, lembrando-se da dupla necessidade de fazer esporadicamente algum esporte e de almoçar, vestiu radiante um calção de banho e resolveu seguir o itinerário da galinha: em pulos cautelosos alcançou o telhado onde esta, hesitante e trêmula, escolhia com urgência outro rumo. A perseguição tornou-se mais intensa. De telhado a telhado foi percorrido mais de um quarteirão da rua. Pouco afeita a uma luta mais selvagem pela vida, a galinha tinha que decidir por si mesma os caminhos a tomar, sem nenhum auxílio de sua raça. O rapaz, porém, era um caçador adormecido. E por mais ínfima que fosse a presa o grito de conquista havia soado.

Sozinha no mundo, sem pai nem mãe, ela corria, arfava, muda, concentrada. Às vezes, na fuga, pairava ofegante num beiral de telhado e enquanto o rapaz galgava outros com dificuldade tinha tempo de se refazer por um momento. E então parecia tão livre.

Estúpida, tímida e livre. Não vitoriosa como seria um galo em fuga. Que é que havia nas suas vísceras que fazia dela um ser? A galinha é um ser. É verdade que não se pode­ria contar com ela para nada. Nem ela própria contava consigo, como o galo crê na sua crista. Sua única vantagem é que havia tantas galinhas que morrendo uma surgiria no mesmo instante outra tão igual como se fora a mesma.

Afinal, numa das vezes em que parou para gozar sua fuga, o rapaz alcançou-a. Entre gritos e penas, ela foi presa. Em seguida carregada em triunfo por uma asa através das telhas e pousada no chão da cozinha com certa violência. Ainda tonta, sacudiu-se um pouco, em cacarejos roucos e indecisos. Foi então que aconteceu. De pura afobação a galinha pôs um ovo. Surpreendida, exausta. Talvez fosse prematuro. Mas logo depois, nascida que fora para a maternidade, pare­cia uma velha mãe habituada. Sentou-se sobre o ovo e assim ficou, respirando, abotoando e desabotoando os olhos. Seu coração, tão pequeno num prato, solevava e abaixava as penas, enchendo de tepidez aquilo que nunca passaria de um ovo. Só a menina estava perto e assistiu a tudo estarrecida. Mal porém conseguiu desvencilhar-se do acontecimento, despregou-se do chão e saiu aos gritos:

— Mamãe, mamãe, não mate mais a galinha, ela pôs um ovo! ela quer o nosso bem!

Todos correram de novo à cozinha e rodearam mudos a jovem parturiente. Esquentando seu filho, esta não era nem suave nem arisca, nem alegre, nem triste, não era nada, era uma galinha. O que não sugeria nenhum sentimento especial. O pai, a mãe e a filha olhavam já há algum tempo, sem propriamente um pensamento qualquer. Nunca ninguém acariciou uma cabeça de galinha. O pai afinal decidiu-se com certa brusquidão:

— Se você mandar matar esta galinha nunca mais comerei galinha na minha vida!

— Eu também! jurou a menina com ardor. A mãe, cansada, deu de ombros.

Inconsciente da vida que lhe fora entregue, a galinha passou a morar com a família. A menina, de volta do colégio, jogava a pasta longe sem interromper a corrida para a cozinha. O pai de vez em quando ainda se lembrava: "E dizer que a obriguei a correr naquele estado!" A galinha tornara-se a rainha da casa. Todos, menos ela, o sabiam. Continuou entre a cozinha e o terraço dos fundos, usando suas duas capacidades: a de apatia e a do sobressalto.

Mas quando todos estavam quietos na casa e pareciam tê-la esquecido, enchia-se de uma pequena coragem, resquícios da grande fuga — e circulava pelo ladrilho, o corpo avançando atrás da cabeça, pausado como num campo, embora a pequena cabeça a traísse: mexendo-se rápida e vibrátil, com o velho susto de sua espécie já mecanizado.

Uma vez ou outra, sempre mais raramente, lembrava de novo a galinha que se recortara contra o ar à beira do telhado, prestes a anunciar. Nesses momentos enchia os pulmões com o ar impuro da cozinha e, se fosse dado às fêmeas cantar, ela não cantaria mas ficaria muito mais contente. Embora nem nesses instantes a expressão de sua vazia cabeça se alterasse. Na fuga, no descanso, quando deu à luz ou bicando milho — era uma cabeça de galinha, a mesma que fora desenhada no começo dos séculos.

Até que um dia mataram-na, comeram-na e passaram-se anos.


Texto extraído do livro “Laços de Família”, Editora Rocco — Rio de Janeiro, 1998, pág. 30. Selecionado por Ítalo Moriconi, figura na publicação “Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século”.

A bela e a fera (Clarice Lispector)

Bem, então saiu do salão de beleza pelo elevador do Copacabana Palace Hotel. O chofer não estava lá. Olhou o relógio: eram quatro horas da tarde. E de repente lembrou-se: tinha dito a "seu" José para vir buscá-la às cinco, não calculando que não faria as unhas dos pés e das mãos, só a massagem. Que devia fazer? Tomar um táxi? Mas tinha consigo uma nota de quinhentos cruzeiros e o homem do táxi não teria troco. Trouxera dinheiro porque o marido lhe dissera que nunca se deve andar sem nenhum dinheiro. Ocorreu-lhe voltar ao salão de beleza e pedir dinheiro. Mas - mas era uma tarde de maio e o ar fresco era uma flor aberta com o seu perfume. Assim achou que era maravilhoso e inusitado ficar de pé na rua - ao vento que mexia com os seus cabelos. Não se lembrava quando fora a última vez que estava sozinha consigo mesma. Talvez nunca. Sempre era ela - com outros, e nesses outros ela se refletia e os outros refletiam-se nela. Nada era – era puro, pensou sem se entender. Quando se viu no espelho – a pele trigueira pelos banhos de sol faziam ressaltar as flores douradas perto do rosto nos cabelos negros – conteve-se para não exclamar um “ah!” – pois ela era cinqüenta milhões de unidades de gente linda. Nunca houve – em todo o passado do mundo – alguém que fosse como ela. E, depois, em três trilhões de trilhões de ano – não haveria uma moça exatamente como ela.
“Eu sou uma chama acesa! E rebrilho e rebrilho toda essa escuridão!”
Este momento era único – e ela teria durante a vida milhares de momentos únicos. Até suou frio na testa, por tanto lhe ser dado e por ela avidamente tomado.
“A beleza pode levar à espécie de loucura que é a paixão.” Pensou: “estou casada, tenho três filhos, estou segura.”
Ela tinha um nome a preservar: era Carla de Sousa e Santos. Eram importantes o “de” e o “e”: marcavam classe e quatrocentos anos de carioca. Vivia nas manadas de mulheres e homens que, sim, que simplesmente “podiam”. Podiam o quê? Ora, simplesmente podiam. E ainda por cima, viscosos pois que o “podia” deles era bem oleado nas máquinas que corriam sem barulho de metal ferrugento. Ela, que era uma potência. Uma geração de energia elétrica. Ela, que para descansar usava os vinhedos do seu sítio. Possuía tradições podres mas de pé. E como não havia nenhum novo critério para sustentar as vagas e grandes esperanças, a pesada tradição ainda vigorava. Tradição de quê? De nada, se se quisesse apurar. Tinha a seu favor apenas o fato de que os habitantes tinham uma longa linhagem atrás de si, o que, apesar de linhagem plebéia, bastava para lhes dar uma certa pose de dignidade.
Pensou assim, toda enovelada: “Ela que, sendo mulher, o que lhe parecia engraçado ser ou não ser, sabia que se fosse homem, naturalmente seria banqueiro, coisa normal que acontece entre os “dela”, isto é, de sua classe social, à qual o marido, porém, alcançara com muito trabalho e que o classificava de “self made man” enquanto ela não era uma “self made woman”. No fim do longo pensamento, pareceu-lhe que – que não pensara em nada.
Um homem sem uma perna, agarrando-se numa muleta, parou diante dela e disse:
- Moça, me dá um dinheiro para eu comer?
“Socorro!!!” gritou-se para si mesma ao ver a enorme ferida na perna do homem. “Socorre-me, Deus”, disse baixinho.
Estava exposta àquele homem. Estava completamente exposta. Se tivesse marcado com “seu” José na saída da Avenida Atlântica, o hotel que ficava o cabeleireiro não permitiria que “essa gente” se aproximasse. Mas na Avenida Copacabana tudo era possível: pessoas de toda a espécie. Pelo menos de espécie diferente da dela. “Da dela?” “Que espécie de ela era para ser ‘da dela’?” Ela – os outros. Mas, mas a morte não nos separa, pensou de repente e seu rosto tomou ar de uma máscara de beleza e não beleza de gente: sua cara por um momento se endureceu.
Pensamento do mendigo: “essa dona de cara pintada com estrelinhas douradas na testa, ou não me dá ou me dá muito pouco”. O correu-lhe então, um pouco cansado: “ou dá quase nada”.
Ela espantada: como praticamente não andava na rua – era de carro de porta à porta – chegou a pensar: ele vai me matar? Estava atarantada e perguntou:
- Quanto é que se costuma dar?
- O que a pessoa pode dar e quer dar - respondeu o mendigo espantadíssimo.
Ela, que não pagava o salão de beleza, o gerente deste mandava cada mês sua conta para a secretária do marido. “Marido”. Ela pensou: o marido o que faria com o mendigo? Sabia que: nada. Eles não fazem nada. E ela – ela era “eles” também. Tudo o que pode dar? Podia dar o banco do marido, poderia lhe dar seu apartamento, sua casa de campo, suas jóias...
Mas alguma coisa que era uma avareza de todo o mundo, perguntou:
- Quinhentos cruzeiros basta? É só o que eu tenho.
O mendigo olhou-a espantado.
- Está rindo de mim, moça?
- Eu?? Não estou não, eu tenho mesmo os quinhentos na bolsa...
Abriu-a, tirou-lhe a nota e estendeu-a humildemente ao homem, quase lhe pedindo desculpas.
O homem perplexo.
E depois rindo, mostrando as gengivas quase vazias:
- Olhe – disse ele -, ou a senhora é muito boa ou não está bem da cabeça... Mas, aceito, não vá dizer depois que roubei, ninguém vai me acreditar. Era melhor me dar trocado.
- Eu não tenho trocado, só tenho essa nota de quinhentos.
O homem pareceu assustar-se, disse qualquer coisa quase incompreensível por causa da má dicção de poucos dentes.
Enquanto isso a cabeça dele pensava: comida, comida, comida boa, dinheiro, dinheiro.
A cabeça dela era cheia de festas, festas, festas. Festejando o quê? Festejando a ferida alheia? Uma coisa os unia: ambos tinham uma vocação por dinheiro. O mendigo gastava tudo o que tinha, enquanto o marido de Carla, banqueiro, colecionava dinheiro. O ganha-pão era a Bolsa de Valores, e inflação, e lucro. O ganha-pão do mendigo era a redonda ferida aberta. E ainda por cima, devia ter medo de ficar curado, adivinhou ela, porque, se ficasse bom, não teria o que comer, isso Carla sabia: “quem não tem bom emprego depois de certa idade...” Se fosse moço, poderia ser pintor de paredes. Como não era, investia na ferida grande em carne viva e purulenta. Não, a vida não era bonita.
Ela se encostou na parede e resolveu deliberadamente pensar. Era diferente porque não tinha o hábito e ela não sabia que pensamento era visão e compreensão e que ninguém podia se intimar assim: pense!
Bem. Mas acontece que resolver era um obstáculo. Pôs-se então a olhar para dentro de si e realmente começaram a acontecer. Só que tinha os pensamentos mais tolos. Assim: esse mendigo sabe inglês? Esse mendigo já comeu caviar, bebendo champanhe? Eram pensamentos tolos porque claramente sabia que o mendigo não sabia inglês, nem experimentara caviar e champanhe. Mas não pôde se impedir de ver nascer em si mais um pensamento absurdo: ele já fez esportes de inverno na Suíça?
Desesperou-se então. Desesperou-se tanto que lhe veio o pensamento feito de duas palavras apenas “Justiça Social”.
Que morram todos os ricos! Seria a solução, pensou alegre. Mas – quem daria dinheiro aos pobres?
De repente – de repente tudo parou. Os ônibus pararam, os carros pararam, os relógios pararam, as pessoas na rua imobilizaram-se – só seu coração batia, e para quê?
Viu que não sabia gerir o mundo. Era uma incapaz, com cabelos negros e unhas compridas e vermelhas. Ela era isso: como uma fotografia colorida fora de foco. Fazia todos os dias a lista do que precisava ou queria fazer no dia seguinte – era desse modo que se ligara ao tempo vazio. Simplesmente ela não tinha o que fazer. Faziam tudo por ela. Até mesmo os dois filhos – pois bem, fora o marido que determinara que teriam dois...
“Tem-se que fazer força para vencer na vida”, dissera-lhe o avô morto. Seria ela, por acaso, “vencedora”? Se vencer fosse estar em plena tarde clara na rua, a cara lambuzada de maquilagem e lantejoulas douradas... Isso era vencer? Que paciência tinha que ter consigo mesma. Que paciência tinha que ter para salvar a sua própria vida. Salvar de quê? Do julgamento? Mas quem julgava? Sentiu a boca inteiramente seca e a garganta em fogo – exatamente como quando tinha que se submeter a exames escolares. E não havia água! Sabe o que é isso – não haver água?
Quis pensar em outra coisa e esquecer o difícil momento presente. Então lembrou-se de frases de um livro póstumo de Eça de Queirós que havia estudado no ginásio: “O lago de Tiberíade resplandeceu transparente, coberto de silêncio, mais azul que o céu, todo orlado de prados floridos, de densos vergeis, de rochas de pórfiro, e alvos terrenos por entre os palmares, sob o vôo das rolas.”
Sabia de cor porque, quando adolescente, era muito sensível a palavras e porque desejava para si mesma o destino de resplendor do lago de Tiberíade.
Teve uma vontade inesperadamente assassina: a de matar todos os mendigos do mundo! Somente para que ela, depois da matança, pudesse usufruir em paz seu extraordinário bem-estar.
Não. O mundo não sussurrava.
O mundo gri-ta-va!!! Pela boca desdentada desse homem.
A jovem senhora do banqueiro pensou que não ia suportar a falta de maciez que se lhe jogavam no rosto tão maquilado.
E A festa? Como diria na festa, quando dançasse, como diria ao parceiro que a teria entre os braços... O seguinte: olhe, o mendigo também tem sexo, disse que tinha onze filhos. Ele não vai a reuniões sociais, ele não sai nas colunas do Ibrahim, ou do Zózimo, ele tem fome de pão e não de bolos, ele na verdade só quer comer mingau pois não tem dentes para mastigar carne... “Carne?” Lembrou-se vagamente que a cozinheira dissera que o “filet mignon” subira de preço. Sim. Como poderia ela dançar? Só se fosse uma dança doida e macabra de mendigos.
Não, ela não era mulher de ter chiliques e fricotes e ir desmaiar ou se sentir mal. Como algumas de suas “coleguinhas” de sociedade. Sorriu um pouco ao pensar em termos de “coleguinhas”. Colegas em quê? Em se vestir bem? Em dar jantares para trinta, quarenta pessoas?
Ela mesma aproveitando o jardim no verão que se extinguia dera uma recepção para quantos convidados? Não, não queria pensar nisso, lembrou-se (por que sem o mesmo prazer?) das mesas espalhadas sobre a relva, a luz de vela... “luz de vela”? pensou, mas eu estou doida? Eu caí num esquema? Num esquema de gente rica?
“Antes de casar era de classe média, secretária do banqueiro com quem se casara agora e agora – agora luz de velas. Estou é brincando de viver, pensou, a vida não é isso.”
“A beleza pode ser de uma grande ameaça.” A extrema graça se confundiu com uma perplexidade e uma funda melancolia. “A beleza assusta”. “Se eu não fosse tão bonita teria tido outro destino”, pensou ajeitando as flores douradas sobre os negríssimos cabelos.
Ela uma vez vira uma amiga inteiramente de coração torcido e doído e doido de forte paixão. Então não quisera nunca experimentar. Sempre tivera medo das coisas belas demais ou horríveis demais: é que não sabia em si como responder-lhes e se responderia se fosse igualmente bela ou igualmente horrível.
Estava assustada quando vira o sorriso de Mona Lisa, ali, à sua mão no Louvre. Como se assustara com o homem da ferida ou com a ferida do homem.
Teve vontade de gritar para o mundo: “Eu não sou ruim! Sou um produto nem sei de quê, como saber dessa miséria de alma”.
Para mudar de sentimento – pois que ela não os agüentava e já tinha vontade de, por desespero, dar um pontapé violento na ferida do mendigo -, para mudar de sentimentos pensou: este é o meu segundo casamento, isto é, o marido anterior estava vivo.
Agora entendia por que se casara da primeira vez e estava em leilão: quem dá mais? Quem dá mais? Então está vendida. Sim, casara-se pela primeira vez com o homem que “dava mais”, ela o aceitara porque ele era rico e era um pouco acima dela em nível social. Vendera-se. E o segundo marido? Seu casamento estava findando, ele com duas amantes... e ela tudo suportando porque um rompimento seria escandaloso: seu nome era por demais citado nas colunas sociais. E voltaria ela a seu nome de solteira? Até habituar-se ao seu nome de solteira, ia demorar muito. Aliás, pensou rindo de si mesma, aliás, ela aceitava este segundo porque ele lhe dava grande prestígio. Vendera-se às colunas sociais? Sim. Descobria isso agora. Se houvesse para ela um terceiro casamento – pois era bonita e rica -, se houvesse, com quem se casaria? Começou a rir um pouco histericamente porque pensara: o terceiro marido era o mendigo.
De repente perguntou ao mendigo:
- O senhor fala inglês?
O homem nem sequer sabia o que ela lhe perguntara. Mas, obrigado a responder pois a mulher já o comprara-o com tanto dinheiro, saiu pela evasiva.
- Falo sim. Pois não estou falando agora mesmo com a senhora? Por quê? A senhora é surda? Então vou gritar: FALO.
Espantada pelos enormes gritos do homem, começou a suar frio. Tomava plena consciência de que até agora fingira que não havia os que passam fome, não falam nenhuma língua e que havia multidões anônimas mendigando para sobreviver. Ela soubera sim, mas desviara a cabeça e tampara os olhos. Todos, mas todos – sabem e fingem que não sabem. E mesmo que não fingissem iam ter um mal-estar. Como não teriam? Não, nem isso teriam.
Ela era... Afinal de contas quem era ela?
Sem comentários, sobretudo porque a pergunta não durou um átimo de segundo: pergunta e resposta não tinham sido pensamentos de cabeça, eram de corpo.
Eu sou o Diabo, pensou lembrando-se do que aprendera na infância. E o mendigo é Jesus. Mas – o que ele quer não é dinheiro, é amor, esse homem se perdeu na humanidade como eu também me perdi.
Quis forçar-se a entender o mundo e só conseguiu lembrar-se de fragmentos de frases ditas pelos amigos do marido: “essas usinas não serão suficientes”. Que usinas, santo Deus? As do Ministro Galhardo? Teria ele usinas? A “energia elétrica... hidrelétrica”?
E a magia essencial de viver – onde estava agora? Em que canto do mundo? No homem sentado na esquina?
A mola do mundo é dinheiro? Fez-se ela a pergunta. Mas quis fingir que não era. Sentiu-se tão, tão rica que teve um mal-estar.
Pensamento do mendigo: “Essa mulher é doida ou roubou o dinheiro porque milionária ela não pode ser”, milionária era para ele apenas uma palavra e mesmo se nessa mulher ele quisesse encarnar uma milionária não poderia porque: onde se viu milionária ficar parada de pé na rua, gente? Então pensou: ela é daquelas vagabundas que cobram caro de cada freguês e com certeza está cumprindo alguma promessa?
Depois.
Depois.
Silêncio.
Mas de repente aquele pensamento gritado:
- Como é que eu nunca descobri que sou também uma mendiga? Nunca pedi esmola mas mendigo o amor de meu marido que tem duas amantes, mendigo pelo amor de Deus que me achem bonita, alegre, aceitável, e minha roupa de alma está maltrapilha...
“Há coisas que nos igualam”, pensou procurando desesperadamente outro ponto de igualdade. Veio de repente a resposta: eram iguais porque haviam nascido e ambos morreriam. Eram, pois, irmãos.
Teve vontade de dizer: olhe, homem, eu também sou uma pobre coitada, a única diferença é que sou rica. Eu... pensou com ferocidade, eu estou perto de desmoralizar o dinheiro ameaçando o crédito do meu marido na praça. Estou prestes a, de um momento para o outro, me sentar no fio da calçada. Nascer foi a minha pior desgraça. Tendo já pagado esse maldito acontecimento, sinto-me com direito a tudo.
Tinha medo. Mas de repente deu o grande pulo de sua vida: corajosamente sentou-se no chão. “Vai ver que ela é comunista!” pensou meio a meio o mendigo. “E como comunista teria direito às suas jóias, seus apartamentos, sua riqueza e até os seus perfumes.”
Nunca mais seria a mesma pessoa. Não que jamais tivesse visto um mendigo. Mas – mesmo este era em hora errada, como levada de um empurrão e derramar por isso vinho tinto em branco vestido de renda. De repente sabia: esse mendigo era feito da mesma matéria que ela. Simplesmente isso. O “porquê” é que era diferente. No plano físico eles eram iguais. Quanto a ela, tinha uma cultura mediana, e ele não parecia saber de nada, nem quem era o Presidente do Brasil. Ela, porém, tinha uma capacidade aguda de compreender. Será que estivera até agora com a Inteligência embutida? Mas se ela já há pouco, que estivera em contato com uma ferida que pedia dinheiro para comer – passou a só pensar em dinheiro? Dinheiro esse que sempre fora óbvio para ela. E a ferida, ela nunca a vira tão de perto...
- A senhora está se sentindo mal?
- Não estou mal... mas não estou bem, não sei...
Pensou: o corpo é uma coisa que estando doente a gente carrega. O mendigo se carrega a si mesmo.
- Hoje no baile a senhora se recupera e tudo volta ao normal – disse José.
Realmente no baile ela reverdeceria seus elementos de atração e tudo voltaria ao normal.
Sentou-se no banco do carro refrigerado lançando antes de partir o último olhar àquele companheiro de hora e meia. Parecia-lhe difícil despedir-se dele, ele era agora o “eu” alter-ego, ele fazia parte para sempre de sua vida. Adeus. Estava sonhadora, distraída, de lábios entreabertos com se houvesse à beira deles uma palavra. Por um motivo que ela não saberia explicar – ele era verdadeiramente ela mesma. E assim, quando o motorista ligou o rádio, ouviu que o bacalhau produzia nove mil óvulos por ano. Não soube deduzir nada com essa frase, ela que estava precisando de um destino. Lembrou-se de que em adolescente procurara um destino e escolhera cantar. Como parte de sua educação, facilmente lhe arranjaram um bom professor. Mas cantava mal, ela mesma sabia e seu pai, amante das óperas, fingira não notar que ela cantava mal. Mas houve um momento em que ela começou a chorar. O professor perplexo perguntara-lhe o que tinha.
- É que eu tenho medo de, de, de, de, cantar bem...
Mas você canta muito mal, dissera-lhe o professor.
- Também tenho medo, tenho medo também de cantar muito, muito mais mal ainda. Maaaaal mal demais! Chorava ela e nunca teve mais nenhuma aula de canto. Essa história de procurar a arte para entender só lhe acontecera uma vez – depois mergulhara num esquecimento que só agora, aos trinta e cinco anos de idade, através da ferida, precisava ou cantar muito mal ou cantar muito bem – estava desnorteada. Há quanto tempo não ouvia a chamada música clássica porque esta poderia tirá-la do sono automático em que vivia. Eu – estou brincando de viver. No mês que vem ia a New York e descobriu que essa ida era como uma nova mentira, como uma perplexidade. Ter uma ferida na perna – é uma realidade. E tudo na sua vida, desde quando havia nascido, tudo na sua vida fora macio como pulo do gato.
(No carro andando)
De repente pensou: nem lembrei de perguntar o nome dele.
1977
In: Lispector, Clarice. A Bela e a Fera, Nova Fronteira, 1979, 131-146.

domingo, 12 de outubro de 2008

Missa do Galo (Machado de Assis)

Nunca pude entender a conversação que tive com uma senhora, há muitos anos, contava eu dezessete, ela trinta. Era noite de Natal. Havendo ajustado com um vizinho irmos à missa do galo, preferi não dormir; combinei que eu iria acordá-lo à meia-noite.
A casa em que eu estava hospedado era a do escrivão Meneses, que fora casado, em primeiras núpcias, com uma de minhas primas. A segunda mulher, Conceição, e a mãe desta acolheram-me bem, quando vim de Mangaratiba para o Rio de Janeiro, meses antes, a estudar preparatórios. Vivia tranqüilo, naquela casa assobradada da Rua do Senado, com os meus livros, poucas relações, alguns passeios. A família era pequena, o escrivão, a mulher, a sogra e duas escravas. Costumes velhos. Às dez horas da noite toda a gente estava nos quartos; às dez e meia a casa dormia. Nunca tinha ido ao teatro, e mais de uma vez, ouvindo dizer ao Meneses que ia ao teatro, pedi-lhe que me levasse consigo. Nessas ocasiões, a sogra fazia uma careta, e as escravas riam à socapa; ele não respondia, vestia-se, saía e só tornava na manhã seguinte. Mais tarde é que eu soube que o teatro era um eufemismo em ação. Meneses trazia amores com uma senhora, separada do marido, e dormia fora de casa uma vez por semana. Conceição padecera, a princípio, com a existência da comborça; mas, afinal, resignara-se, acostumara-se, e acabou achando que era muito direito.
Boa Conceição! Chamavam-lhe "a santa", e fazia jus ao título, tão facilmente suportava os esquecimentos do marido. Em verdade, era um temperamento moderado, sem extremos, nem grandes lágrimas, nem grandes risos. No capítulo de que trato, dava para maometana; aceitaria um harém, com as aparências salvas. Deus me perdoe, se a julgo mal. Tudo nela era atenuado e passivo. O próprio rosto era mediano, nem bonito nem feio. Era o que chamamos uma pessoa simpática. Não dizia mal de ninguém, perdoava tudo. Não sabia odiar; pode ser até que não soubesse amar.
Naquela noite de Natal foi o escrivão ao teatro. Era pelos anos de 1861 ou 1862. Eu já devia estar em Mangaratiba, em férias, mais fiquei até o Natal para ver "a missa do galo na Corte". A família recolheu-se à hora do costume, eu meti-me na sala da frente, vestido e pronto. Dali passaria ao corredor da entrada e sairia sem acordar ninguém. Tinha três chaves a porta; uma estava com o escrivão, eu levaria outra, a terceira ficava em casa.
— Mas, Sr. Nogueira, que fará você todo esse tempo? Perguntou-me a mãe de Conceição.
— Leio, D. Inácia.
Tinha comigo um romance, Os Três Mosqueteiros, velha tradução creio do Jornal do Comércio. Sentei-me à mesa que havia no centro da sala, e, à luz de um candeeiro de querosene, enquanto a casa dormia, trepei ainda uma vez ao cavalo magro de D'Artagnan e fui-me às aventuras. Dentro em pouco estava completamente ébrio de Dumas. Os minutos voavam, ao contrário do que costumam fazer, quando são de espera; ouvi bater onze horas, mas quase sem dar por elas, um acaso. Entretanto, um pequeno rumor que ouvi dentro veio acordar-me da leitura. Eram uns passos no corredor que ia da sala de visitas à de jantar; levantei a cabeça; logo depois vi assomar à porta da sala o vulto de D. Conceição.
— Ainda não foi? Perguntou ela.
— Não fui; parece que ainda não é meia-noite.
— Que paciência!
Conceição entrou na sala, arrastando as chinelinhas da alcova. Vestia um roupão branco, mal apanhado na cintura. Sendo magra, tinha um ar de visão romântica, não disparatada com o meu livro de aventuras. Fechei o livro; ela foi sentar-se na cadeira que ficava defronte de mim, perto do canapé. Como eu lhe perguntasse de a havia acordado, sem querer, fazendo barulho, respondeu com presteza:
— Não! qual! Acordei por acordar.
Fitei-a um pouco e duvidei da afirmativa. Os olhos não eram de pessoa que acabasse de dormir; pareciam não ter ainda pegado no sono. Essa observação, porém, que valeria alguma cousa em outro espírito, depressa a botei fora, sem advertir que talvez não dormisse justamente por minha causa, e mentisse para me não afligir ou aborrecer. Já disse que ela era boa, muito boa.
— Mas a hora já há de estar próxima, disse eu.
— Que paciência a sua de esperar acordado, enquanto o vizinho dorme! E esperar sozinho! Não tem medo de almas do outro mundo? Eu cuidei que se assustasse quando me viu.
— Quando ouvi os passos estranhei; mas a senhora apareceu logo.
— Que é que estava lendo? Não diga, já sei, é o romance dos Mosqueteiros.
— Justamente: é muito bonito.
— Gosta de romances?
— Gosto.
— Já leu A Moreninha?
— Do Dr. Macedo? Tenho lá em Mangaratiba.
— Eu gosto muito de romances, mas leio pouco, por falta de tempo. Que romances é que você tem lido?
Comecei a dizer-lhe os nomes de alguns. Conceição ouvia-me com a cabeça reclinada no espaldar, enfiando os olhos por entre as pálpebras meio cerradas, sem os tirar de mim. De vez em quando passava a língua pelos beiços, para umedecê-los. Quando acabei de falar, não me disse nada; ficamos assim alguns segundos. Em seguida, via-a endireitar a cabeça, cruzar os dedos e sobre eles pousar o queixo, tendo os cotovelos nos braços da cadeira, tudo sem desviar de mim os grandes olhos espertos.
"Talvez esteja aborrecida", pensei eu.
E logo alto:
— D. Conceição, creio que vão sendo horas, e eu...
— Não, não, ainda é cedo. Vi agora mesmo o relógio; são onze e meia. Tem tempo. Você, perdendo a noite, é capaz de não dormir de dia?
— Já tenho feito isso.
— Eu, não; perdendo uma noite, no outro dia estou que não posso, e, meia hora que seja, hei de passar pelo sono. Mas também estou ficando velha.
— Que velha o que, D. Conceição?
Tal foi o calor da minha palavra que a fez sorrir. De costume tinha os gestos demorados e as atitudes tranqüilas; agora, porém, ergueu-se rapidamente, passou para o outro lado da sala e deu alguns passos, entre a janela da rua e a porta do gabinete do marido. Assim, com o desalinho honesto que trazia, dava-me uma impressão singular. Magra embora, tinha não sei que balanço no andar, como quem lhe custa levar o corpo; essa feição nunca me pareceu tão distinta como naquela noite. Parava algumas vezes, examinando um trecho de cortina ou concertando a posição de algum objeto no aparador; afinal deteve-se, ante mim, com a mesa de permeio. Estreito era o círculo das suas idéias; tornou ao espanto de me ver espertar acordado; eu repeti-lhe o que ela sabia, isto é, que nunca ouvira missa do galo na Corte, e não queria perdê-la.
— É a mesma missa da roça; todas as missas se parecem.
— Acredito; mas aqui há de haver mais luxo e mais gente também. Olhe, a semana santa na Corte é mais bonita que na roça. S. João não digo, nem Santo Antônio...
Pouco a pouco, tinha-se reclinado; fincara os cotovelos no mármore da mesa e metera o rosto entre as mãos espalmadas. Não estando abotoadas as mangas, caíram naturalmente, e eu vi-lhe metade dos braços, muito claros, e menos magros do que se poderia supor. A vista não era nova para mim, posto também não fosse comum; naquele momento, porém, a impressão que tive foi grande. As veias eram tão azuis, que apesar da pouca claridade, podia contá-las do meu lugar. A presença de Conceição espertara-me ainda mais que o livro. Continuei a dizer o que pensava das festas da roça e da cidade, e de outras cousas que me iam vindo à boca. Falava emendando os assuntos, sem saber por que, variando deles ou tornando aos primeiros, e rindo para fazê-la sorrir e ver-lhe os dentes que luziam de brancos, todos iguaizinhos. Os olhos dela não eram bem negros, mas escuros; o nariz, seco e longo, um tantinho curvo, dava-lhe ao rosto um ar interrogativo. Quando eu alteava um pouco a voz, ele reprimia-me:
— Mais baixo! Mamãe pode acordar.
E não saía daquela posição, que me enchia de gosto, tão perto ficavam as nossas caras. Realmente, não era preciso falar alto para ser ouvido; cochichávamos os dous, eu mais que ela, porque falava mais; ela, às vezes, ficava séria, muito séria, com a testa um pouco franzida. Afinal, cansou; trocou de atitude e de lugar. Deu volta à mesa e veio sentar-se do meu lado, no canapé. Voltei-me, e pude ver, a furto, o bico das chinelas; Mas foi só o tempo que ela gastou em sentar-se, o roupão era comprido e cobriu-as logo. Recordo-me que eram pretas. Conceição disse baixinho:
— Mamãe está longe, mas tem o sono muito leve; se acordasse agora, coitada, tão cedo não pegava no sono.
— Eu também sou assim.
— O que? perguntou ela inclinando o corpo, para ouvir melhor.
Fui sentar-me na cadeira que ficava ao lado do canapé e repeti-lhe a palavra. Riu-se da coincidência; também ela tinha o sono leve; éramos três sonos leves.
— Há ocasiões em que sou como mamãe; acordando, custa-me dormir outra vez, rolo na cama, à toa, levanto-me, acendo vela, passeio, torno a deitar-me e nada.
— Foi o que lhe aconteceu hoje.
— Não, não, atalhou ela.
Não entendi a negativa; ela pode ser que também não a entendesse. Pegou das pontas do cinto e bateu com elas sobre os joelhos, isto é, o joelho direito, porque acabava de cruzar as pernas. Depois referiu uma história de sonhos, e afirmou-me que só tivera um pesadelo, em criança. Quis saber se eu os tinha. A conversa reatou-se assim lentamente, longamente, sem que eu desse pela hora nem pela missa. Quando eu acabava uma narração ou uma explicação, ela inventava outra pergunta ou outra matéria, e eu pegava novamente na palavra. De quando em quando, reprimia-me:
— Mais baixo, mais baixo...
Havia, também, umas pausas. Duas outras vezes, pareceu-me que a via dormir; mas os olhos, cerrados por um instante, abriam-se logo sem sono nem fadiga, como se ela os houvesse fechado para ver melhor. Uma dessas vezes creio que deu por mim embebido na sua pessoa, e lembra-me que os tornou a fechar, não sei se apressada ou vagarosamente. Há impressões dessa noite, que me parecem truncadas ou confusas. Contradigo-me, atrapalho-me. Uma das que ainda tenho frescas é que, em certa ocasião, ela, que era apenas simpática, ficou linda, ficou lindíssima. Estava de pé, os braços cruzados; eu, em respeito a ela, quis levantar-me; não consentiu, pôs uma das mãos no meu ombro, e obrigou-me a estar sentado. Cuidei que ia dizer alguma cousa; mas estremeceu, como se tivesse um arrepio de frio, voltou as costas e foi sentar-se na cadeira, onde me achara lendo. Dali relanceou a vista pelo espelho, que ficava por cima do canapé, falou de duas gravuras que pendiam da parede.
— Estes quadros estão ficando velhos. Já pedi a Chiquinho para comprar outros.
Chiquinho era o marido. Os quadros falavam do principal negócio deste homem. Um representava "Cleópatra"; não me recordo o assunto do outro, mas eram mulheres. Vulgares ambos; naquele tempo não me pareciam feios.
— São bonitos, disse eu.
— Bonitos são; mas estão manchados. E depois francamente, eu preferia duas imagens, duas santas. Estas são mais próprias para sala de rapaz ou de barbeiro.
— De barbeiro? A senhora nunca foi a casa de barbeiro.
— Mas imagino que os fregueses, enquanto esperam, falam de moças e namoros, e naturalmente o dono da casa alegra a vista deles com figuras bonitas. Em casa de família é que não acho próprio. É o que eu penso; mas eu penso muita cousa assim esquisita. Seja o que for, não gosto dos quadros. Eu tenho uma Nossa Senhora da Conceição, minha madrinha, muito bonita; mas é de escultura, não se pode pôr na parede, nem eu quero. Está no meu oratório.
A idéia do oratório trouxe-me a da missa, lembrou-me que podia ser tarde e quis dizê-lo. Penso que cheguei a abrir a boca, mas logo a fechei para ouvir o que ela contava, com doçura, com graça, com tal moleza que trazia preguiça à minha alma e fazia esquecer a missa e a igreja. Falava de suas devoções de menina e moça. Em seguida referia umas anedotas de baile, uns casos de passeio, reminiscências de Paquetá, tudo de mistura, quase sem interrupção. Quando cansou do passado, falou do presente, dos negócios da casa, das canseiras de família, que lhe diziam ser muitas, antes de casar, mas não eram nada. Não me contou, mas eu sabia que casara aos vinte e sete anos.
Já agora não trocava de lugar, como a princípio, e quase não saíra da mesma atitude. Não tinha os grandes olhos compridos, e entrou a olhar à toa para as paredes.
— Precisamos mudar o papel da sala, disse daí a pouco, como se falasse consigo.
Concordei, para dizer alguma cousa, para sair da espécie de sono magnético, ou o que quer que era que me tolhia a língua e os sentidos. Queria e não queria acabar a conversação; fazia esforço para arredar os olhos dela, e arredava-os por um sentimento de respeito; mas a idéia de parecer que era aborrecimento, quando não era, levava-me os olhos outra vez para Conceição. A conversa ia morrendo. Na rua, o silêncio era completo.
Chegamos a ficar por algum tempo, — não posso dizer quanto, — inteiramente calados. O rumor único e escasso, era um roer de camundongo no gabinete, que me acordou daquela espécie de sonolência; quis falar dele, mas não achei modo. Conceição parecia estar devaneando. Subitamente, ouvi uma pancada na janela, do lado de fora, e uma voz que bradava: "Missa do galo! Missa do galo"!
— Aí está o companheiro, disse ela levantando-se. Tem graça; você ficou de ir acordá-lo, ele é que vem acordar você. Vá, que hão de ser horas; adeus.
— Já serão horas?, perguntei.
— Naturalmente.
— Missa do galo! — repetiram de fora, batendo.
— Vá, vá, não se faça esperar. A culpa foi minha. Adeus, até amanhã.
E com o mesmo balanço do corpo, Conceição enfiou pelo corredor dentro, pisando mansinho. Saí à rua e achei o vizinho que esperava. Guiamos dali para a igreja. Durante a missa, a figura de Conceição interpôs-se, mais de uma vez, entre mim e o padre; fique isto à conta dos meus dezessete anos. Na manhã seguinte, ao almoço, falei da missa do galo e da gente que estava na igreja sem excitar a curiosidade de Conceição. Durante o dia, achei-a como sempre, natural, benigna, sem nada que fizesse lembrar a conversação da véspera. Pelo Ano-Bom fui para Mangaratiba. Quando tornei ao Rio de Janeiro, em março, o escrivão tinha morrido de apoplexia. Conceição morava no Engenho Novo, mas nem, a visitei nem a encontrei. Ouvi mais tarde que casara com o escrevente juramentado do marido.
________________________________________
— Fim —

Angústia (Anton Tchékhov)

“Com quem a dor partilharei?...”

Anoitece. A neve graúda e úmida gira preguiçosamente ao redor dos lampiões recém acesos e deita-se em placas macias e finas nos telhados, nos lombos dos cavalos, nos ombros, nos gorros. O cocheiro Iona Ptápov está todo branco, como um fantasma. Está sentado na boléia, curvado, tão curvado quanto é possível curvar-se um corpo vivo, e não se mexe. Se toda uma avalanche se despencasse sobre ele, nem assim, ao que parece, ele acharia necessário sacudir a neve... A sua eguazinha também está branca e imóvel. Pela sua imobilidade, suas formas angulosas e as pernas retas como paus, até de perto ela parece um cavalinho de pão-de-mel de um copeque. Ao que tudo indica, ela está mergulhada em meditações. Quem foi arrancado do arado, das costumeiras paisagens cinzentas, e atirado aqui, neste atoleiro, cheio de luzes monstruosas, zoeira incessante e gente apressada, este não pode deixar de meditar...

Iona e a sua eguazinha não se movem do lugar já faz muito tempo. Saíram do pátio ainda antes do almoço, porém não fizeram nem uma corrida. Mas eis que a sombra da noite desce sobre a cidade. A luz pálida dos lampiões cede lugar à cor viva e o bulício das ruas torna-se mais ruidoso.

— Cocheiro, para a Viborgskaia! — ouve Iona. — Cocheiro!

Iona estremece e, através dos cílios grudados pela neve, vê um militar de capote e capuz.

— Para Viborgskaia! — repete o militar. — Mas tu estás dormindo, heim? Para Viborgskaia!

Em sinal de assentimento, Iona puxa as rédeas, em conseqüência do que, placas de neve caem dos seus ombros e do lombo do cavalo. O militar toma assento no trenó. O cocheiro estala os lábios, estica o pescoço à maneira de um cisne, soergue-se e, mais por hábito que por necessidade, brande o chicote. A eguazinha também estica o pescoço, arqueia as pernas magras e, insegura, põe-se em movimento.

— Por onde te metes, lobisomem! — ouve Iona, assim que sai, gritar de dentro da massa escura que balança para diante e para trás. — Aonde te carrega o diabo? Para a dirr-reita!

— Não sabes dirigir! Agüenta a direita! — ralha o militar.

Um cocheiro de carruagem particular pragueja ao cruzar e um transeunte, que atravessara a rua correndo e batera com o ombro no focinho da égua, olha furioso e sacode a neve da manga. Iona se contorce na boléia como se estivesse sentado em alfinetes, joga os cotovelos para os lados, e seus olhos correm como possessos, como se ele não compreendesse quem é e por que está aqui.

— Como todos são canalhas! — zomba o militar. — Só procuram abalroar-te ou se jogar debaixo do teu cavalo! É que estão todos de conluio contra ti!

Iona olha para trás, para o passageiro, e move os lábios... Vê-se que quer dizer alguma coisa, mas da sua garganta não sai nada, a não ser um som gutural.

— O que é? — pergunta o militar.

Iona torce a boca num sorriso, força a garganta e rouqueja:

— É que... patrão... coisa... o ... meu filho... se finou esta semana.

— Hum!... E de que foi que ele morreu?

Iona volta-se de corpo inteiro para o passageiro e fala:

— E quem sabe lá! Vai ver, foi a febre... Ficou três dias no hospital e se finou... É a vontade de Deus.

— Vira, demônio! — soa na escuridão. — Estás tonto, ou o quê, cachorro velho? Toca para a frente!

O cocheiro torna a esticar o pescoço, a soerguer-se, brandindo o chicote com graça pesada. Depois, por várias vezes, ele se volta para o passageiro, mas este fechou os olhos e, pelo visto, não está disposto a escutar. Deixando-o na Viborgskaia, Iona pára diante de um botequim, dobra-se na boléia e torna a ficar imóvel... De novo a neve úmida tinge de branco a ele e a sua égua. Passa uma hora, outra...

Pelo passeio, pisando ruidosamente com as galochas e altercando, passam três rapazes; dois deles são altos e magros, o terceiro é baixo e corcunda.

— Cocheiro, para a ponte Policial! — grita o corcunda com voz de tremolo. — Nós três — por vinte copeques!

Iona puxa as rédeas e estala os lábios. Vinte copeques não é preço justo, mas ele não está para pensar em preço... um rublo ou cinco copeques, para ele dá na mesma agora — haja passageiros... Os moços, aos empurrões e palavrões, vêm para o trenó e sobem no assento todos ao mesmo tempo! Começa a discussão do problema: quais os dois que irão sentados, e qual o terceiro que irá de pé? Após longos debates, bate-boca e acusações, eles chegam à decisão de que deve viajar de pé o corcunda, por ser o menor.

— Anda, toca! — range o corcunda, firmando-se e bafejando na nuca de Iona. — Descansa o cavalo! Mas que gorro o teu, heim, mano! Pior não se acha em toda Petersburgo!...

— Hehe... hehe... — gargalha Iona. — É o que é...

— Anda, tu aí, “é o que é”, toca pra frente! É assim que vais andar o caminho inteiro? E que tal um pescoção?

— A cabeça me estala... — diz um dos compridos. — Ontem na casa dos Dukmássov nós dois, o Vaska e eu, limpamos quatro garrafas de conhaque.

— Não entendo por que mentir! — enfeza o outro comprido.

— Mentes que nem um animal!

— Que Deus me castigue se não é verdade...

— É tão verdade quanto um piolho tossir.

— He... he... — ri Iona. — Os senhores alegres...

— Arre, que os diabos te carreguem!... — indigna-se o corcunda. — Vais andar, carcaça velha, ou não? Isto é maneira de dirigir? Chicote nela! Upa, diabo! Upa! Dá-lhe rijo!

Iona sente atrás das costas o corpo irrequieto e a vibração da voz do corcunda. Ouve os insultos que lhe são dirigidos, vê a gente, e o aperto da solidão pouco a pouco começa a afrouxar no seu peito. O corcunda continua a imprecar até que engasga num palavrão de seis andares e desanda a tossir. Os dois compridos põem-se a conversar sobre uma certa Nadejda Petrovna. Iona olha para eles por cima do ombro. Escolhendo um momento propício, volta-se novamente e balbucia:

— E eu nesta semana...coisa... finou-se meu filho!

— Todos vamos nos finar... — suspira o corcunda, enxugando os lábios depois do acesso de tosse. — Anda, toca, toca! Deus meu, palavra que não agüento mais viajar assim! Quando é que nós vamos chegar?

— Você poderia animá-lo um pouquinho — na nuca!

— Estás ouvindo, traste velho? Vou te encher de pescoções! Se a gente começa a fazer cerimônia com a tua laia, acaba andando a pé! Estás ouvindo, Dragão Gorinitch? Ou não te importa o que dizemos?

E Iona ouve, mais do que sente, o ruído do pescoção.

— Heehe... — ri ele. — Que senhores alegres... benza-os Deus!

— Cocheiro, és casado? — pergunta um dos compridos.

— Eu, é? Hehe... alegres senhores! Eu agora só tenho uma mulher — a terra úmida... Hehe... hoho... A sepultura, é o que é!... O filho, este morreu... e eu estou vivo... Coisa esquisita, a morte errou de porta... Em vez de vir me buscar, foi ao filho...

E Iona volta-se para contar como morreu seu filho, mas aí o corcunda suspira aliviado e declara que, graças a Deus, eles já chegaram, finalmente. Tendo recebido os vinte copeques, Iona finca longamente o olhar no encalço dos farristas, que desaparecem num portão escuro. Outra vez ele está só, e outra vez o silêncio cai sobre ele... A angústia, que amainara um pouco, surge de novo e oprime o peito com força maior ainda. Os olhos de Iona correm aflitos e martirizados pelas turbas que se agitam de ambos os lados da rua: não haverá no meio dessas milhares de pessoas ao menos uma que quisesse ouvi-lo? Mas as turbas correm sem notá-lo, nem a ele, nem à sua angústia... Angústia enorme, que não conhece limites. Se estourasse o peito de Iona e a angústia se derramasse, ela inundaria, parece, o mundo inteiro — e no entanto, ela é invisível. Ela conseguiu aninhar-se numa casca tão ínfima, que não se pode enxergá-la nem com lanterna à luz do sol...

Iona vê um zelador de prédio com um saco na mão e decide falar com ele.

— Mano, que horas serão? — pergunta ele.

— Passa das nove... E por que ficas parado aqui? Vai andando!

Iona afasta-se alguns passos, dobra o corpo e entrega-se à angústia... Dirigir-se aos homens ele já considera inútil. Mas não passam nem cinco minutos e ele se endireita, sacode a cabeça como se sentisse uma dor aguda e puxa as rédeas... Ele não agüenta mais.

“Para casa — pensa ele. — Para casa!”

E a eguazinha, como que adivinhando-lhe o pensamento, põe-se a correr a trote miúdo. Cerca de hora e meia depois, Iona já está sentado junto a uma estufa grande e suja. Em cima da estufa, nos bancos, no chão, homens estão roncando. O ar está denso e abafado... Iona olha para os dorminhocos, coça-se, e lamenta que voltou para casa tão cedo.

“Não ganhei nem para a aveia”, pensa ele. “É por isso que estou aflito. Um homem que entende do seu trabalho... que está de barriga cheia e o cavalo também, este está sempre sossegado...

Num dos cantos, acorda um cocheiro moço, pigarreia e estende a mão para o balde de água.

— Deu vontade de beber? — pergunta Iona.

— De beber, pelo visto!

— Pois é... Bom proveito... Pois eu, mano... morreu meu filho... Soube? Esta semana, no hospital... Que história!

Iona olha para ver o efeito que produziram suas palavras, mas não vê nada. O moço puxou a coberta por cima da cabeça e já dorme. O velho suspira e se coça. Assim como o moço tinha vontade de beber, ele tem vontade de falar. Logo vai fazer uma semana que o filho morreu, e ele ainda não conversou direito com ninguém... É preciso conversar com vagar, com calma... É preciso contar como o filho ficou doente, como sofreu, o que disse antes de morrer, como morreu. É preciso descrever o enterro e a viagem ao hospital para buscar a roupa do defunto. Na aldeia ficou uma filha, Aníssia... Também dela é preciso falar... Há tanta coisa de que poderia falar agora... O ouvinte deve gemer, suspirar, compadecer-se... Melhor ainda seria falar com mulheres. Elas podem ser burras, mas põem-se a chorar à segunda palavra.

“Vou ver o cavalo — pensa Iona. — “Sempre terei tempo para dormir... Dormirei até que chegue...”

Iona se veste e vai para a cavalariça, onde está a sua égua. Ele pensa na aveia, na palha, no tempo... No filho, quando está sozinho, ele não consegue pensar. Falar com alguém a respeito do filho, isso ele poderia, mas pensar sozinho e imaginá-lo é-lhe insuportável e assustador...

— Mastigas? — pergunta Iona ao seu cavalo, vendo-lhe os olhos brilhantes. Mastiga, anda, mastiga... Se não ganhamos para a aveia, comeremos palha... Pois é... Já estou velho para este trabalho... O filho é que devia trabalhar, e não eu... Aquele sim é que era cocheiro de verdade... Se ao menos vivesse...

Iona cala-se um pouco, depois continua:

— Assim é, mana egüinha... Não temos mais Kusma Ionitch... Foi-se desta para melhor... Pegou e morreu, à toa... Agora, imagina tu, por exemplo — tu tens um potrinho, e tu és a mãe desse potrinho... E de repente, imagina, esse mesmo potrinho se despacha desta para melhor... Dá pena ou não dá?

A eguazinha mastiga, escuta e esquenta com seu bafo as mãos do dono...

Iona se deixa arrebatar e conta-lhe tudo...

— Fim —
Tradução de Tatiana Belinky

domingo, 28 de setembro de 2008

Só vim falar ao telefone (G. García Márquez)

Este conto será discutido no dia 03 de outubro. Caso queira participar das discussões pessoalmente, escreva um recado que lhe retornaremos com o endereço do encontro de discussões em Brasília - Brasil. Caso não possa participar pessoalmente, deixe seus comentários abaixo. Boa leitura!

Só vim falar ao telefone (G. García Márquez)

Numa tarde de chuvas primaveris, quando viajava sozinha para Barcelona dirigindo um automóvel alugado, Maria de la Luz Cervantes sofreu uma pane no deserto dos Monegros. Era uma mexicana de 27 anos, bonita e séria, que anos antes tivera certo nome como atriz de variedades. Estava casada com um prestidigitador de salão, com quem ia se reunir naquele dia após visitar alguns parentes em Saragoça. Depois de uma hora de sinais desesperados aos automóveis e caminhões que passavam direto pela tormenta, o chofer de um ônibus destrambelhado compadeceu-se dela. Mas avisou que não ia muito longe.
- Não importa - disse Maria. - Eu só preciso de um telefone.
Era verdade, e só precisava para prevenir seu marido que não chegaria antes das sete da noite. Parecia um passarinho ensopado, com um agasalho de estudante e sapatos de praia em abril, e estava tão atordoada por tudo que esqueceu de levar as chaves do automóvel. Uma mulher que viajava ao lado do chofer, de aspecto militar mas de maneiras doces, deu-lhe uma toalha e uma manta, e abriu espaço para ela ao seu lado. Depois de mais ou menos se secar, Maria sentou-se, enrolou-se na manta e tentou acender um cigarro, mas os fósforos estavam molhados. A vizinha de assento deu-lhe fogo e pediu um cigarro dos poucos que estavam secos. Enquanto fumavam, Maria cedeu à vontade de desabafar e sua voz soou mais que a chuva e o barulho da lataria do ônibus. A mulher interrompeu-a com o dedo nos lábios.
- Estão dormindo - murmurou.
Maria olhou por cima do ombro e viu que o ônibus estava ocupado por mulheres de idades incertas e condições diferentes que dormiam enroladas em mantas iguais à dela. Contagiada por sua placidez, Maria enroscou-se no assento e abandonou-se ao rumor da chuva. Quando despertou era de noite e o aguaceiro havia se dissolvido num sereno gelado. Não tinha a menor idéia de quanto tempo havia dormido nem em que lugar do mundo estavam. Sua vizinha de assento tinha uma atitude alerta.
- Onde estamos? - perguntou Maria.
- Chegamos - respondeu a mulher.
O ônibus havia entrado no pátio empedrado de um edifício enorme e sombrio que parecia um velho convento num bosque de árvores colossais. As passageiras, iluminadas apenas por um farol do pátio, permaneceram imóveis até que a mulher de aspecto militar as fez descer com um sistema de ordens primárias, como em um jardim-de-infância. Todas eram mais velhas, e moviam-se com tal parcimônia na penumbra do pátio que pareciam imagens de um sonho.
Maria, a última a descer, pensou que eram freiras. Pensou menos quando viu várias mulheres de uniforme que as receberam na porta do ônibus, e cobriam suas cabeças para que não se molhassem, e as colocavam em fila indiana, dirigindo-as sem falar com elas, com palmas rítmicas e peremptórias. Depois de se despedir de sua vizinha de assento, Maria quis devolver-lhe a manta, mas ela falou que cobrisse a cabeça para atravessar o pátio e que a devolvesse na portaria.
- Será que lá tem telefone? – perguntou Maria.
- Claro - disse a mulher. - Lá mesmo eles mostram.
Pediu a Maria outro cigarro, e ela deu o resto do maço molhado. “No caminho eles secam”, disse.
A mulher fez adeus com a mão, e quase gritou: “Boa sorte”. O ônibus arrancou sem dar tempo para mais nada.
Maria começou a correr para a entrada do edifício. Uma guarda tentou detê-la batendo palmas enérgicas, mas teve que apelar para um grito imperioso: “Eu disse alto!”, Maria olhou por baixo da manta, e viu uns olhos de gelo e um dedo inapelável indicando a fila. Obedeceu. Já no saguão do edifício separou-se do grupo e perguntou ao porteiro onde havia um telefone. Uma das guardas fez com que ela voltasse para a fila dando-lhe palmadinhas nas costas, enquanto dizia com modos muito suaves:
- Por aqui, gracinha, o telefone é por aqui.
Maria seguiu com as outras mulheres por um corredor tenebroso, e no final entrou em um dormitório coletivo onde as guardas recolheram as mantas e começaram a repartir as camas. Uma mulher diferente, que Maria achou mais humana e de hierarquia mais alta, percorreu a fila comparando uma lista com os nomes que as recém-chegadas tinham escrito num cartão costurado no sutiã. Quando chegou na frente de Maria surpreendeu-se que ela não levasse a identificação.
- É que só vim telefonar - disse Maria.
Explicou-lhe com muita pressa que seu automóvel havia quebrado na estrada. O marido, que era mago de festas, estava esperando por ela em Barcelona para cumprir três compromissos até a meia-noite, e queria avisá-lo que não chegaria a tempo para acompanhá-lo. Eram quase sete da noite. Ele sairia de casa dentro de dez minutos, e ela temia que cancelasse tudo por causa de seu atraso. A guarda pareceu escutá-la com atenção.
- Como é o seu nome? - perguntou.
Maria disse como se chamava com um suspiro de alívio, mas a mulher não encontrou seu nome depois de repassar a lista várias vezes. Perguntou alarmada a uma guarda, e esta, sem nada para dizer, sacudiu os ombros.
- É que eu só vim para telefonar - disse Maria.
- Está bem, beleza - disse a superiora, levando-a até a sua cama com uma doçura demasiado ostensiva para ser real -, se você se portar bem vai poder falar por telefone com quem quiser. Mas agora não, amanhã.
Alguma coisa aconteceu então na mente de Maria que a fez entender por que as mulheres do ônibus moviam-se como no fundo de um aquário. Na realidade, estavam apaziguadas com sedantes, e aquele palácio em sombras, com grossos muros de pedra e escadarias geladas, era na realidade um hospital de enfermas mentais. Assustada, escapou correndo do dormitório, e antes de chegar ao portão uma guarda gigantesca com um macacão de mecânico agarrou-a com um golpe de tigre e imobilizou-a no chão com uma chave mestra. Maria olhou-a de viés paralisada de terror.
- Pelo amor de Deus - disse. - Juro pela minha mãe morta que só vim telefonar.
Bastou ver sua cara para saber que não havia súplica possível diante daquela energúmena vestida de mecânico que era chamada de Herculina por sua força descomunal. Era a responsável pelos casos difíceis, e duas reclusas tinham morrido estranguladas com seu braço de urso-polar adestrado na arte de matar por descuido. O primeiro caso foi resolvido como sendo um acidente comprovado. O segundo foi menos claro, e Herculina foi advertida e admoestada de que na próxima vez seria investigada a fundo. A versão corrente era que aquela ovelha desgarrada de uma família de sobrenomes grandes tinha uma turva carreira de acidentes duvidosos em vários manicômios da Espanha. Para que Maria dormisse a primeira noite, tiveram que lhe injetar um sonífero. Antes do amanhecer, quando foi despertada pelo desejo de fumar, estava amarrada pelos pulsos e pelos tornozelos nas barras da cama. Ninguém acudiu aos seus gritos.
Pela manhã, enquanto o marido não encontrava em Barcelona nenhuma pista de seu paradeiro, tiveram que levá-la à enfermaria, pois a encontraram sem sentidos num pântano de suas próprias misérias. Não soube quanto tempo havia passado quando voltou a si. Mas então o mundo era um remanso de amor, e na frente de sua cama estava um ancião monumental, com um andar de plantígrado e um sorriso sedante, que com dois passes de mestre devolveu-lhe a alegria de viver. Era o diretor do sanatório. Antes de dizer qualquer coisa, sem ao menos cumprimentá-lo, Maria pediu um cigarro. Ele deu, aceso, e também o maço quase cheio. Maria não pôde reprimir o pranto.
- Aproveite para chorar tudo que você quiser - disse o médico, com sua voz adormecedora. - Não existe melhor remédio que as lágrimas.
Maria desafogou-se sem pudor, como nunca havia conseguido com seus amantes casuais nos tédios de depois do amor. Enquanto a ouvia, o médico a penteava com os dedos, arrumava o travesseiro para que respirasse melhor, a guiava pelo labirinto de sua incerteza com uma sabedoria e uma doçura que ela jamais havia sonhado. Era, pela primeira vez em sua vida, o prodígio de ser compreendida por um homem que a escutava com toda a alma sem esperar a recompensa de levá-la para a cama. Após uma longa hora, desafogada até o fim, pediu-lhe autorização para telefonar para o seu marido.
O médico levantou-se com toda a majestade de seu cargo. “Ainda não, princesa”, disse, dando em sua face o tapinha mais terno que ela jamais havia sentido. “Cada coisa tem sua hora.”, Da porta, fez uma bênção episcopal, e desapareceu para sempre.
- Confie em mim - disse a ela.
Naquela mesma tarde, Maria foi inscrita no asilo com um número de série, e com um comentário superficial sobre o enigma da sua procedência e as dúvidas sobre sua identidade. Na margem ficou uma qualificação escrita a mão pelo diretor: agitada.
Tal como Maria havia previsto, o marido saiu de seu modesto apartamento do bairro de Horta com meia hora de atraso para cumprir os três compromissos. Era a primeira vez que ela não chegava a tempo em quase dois anos de uma união livre bem combinada, e ele entendeu o atraso pela ferocidade das chuvas que assolaram a província naquele fim de semana. Antes de sair deixou um recado pregado na porta com o itinerário da noite. Na primeira festa, com todas as crianças disfarçadas de canguru, dispensou o truque-mor dos peixes invisíveis porque não conseguia fazê-lo sem a ajuda dela. O segundo compromisso era na casa de uma anciã de 93 anos, numa cadeira de rodas, que se vangloriava de haver celebrado cada um dos últimos trinta aniversários com um mago diferente. Ele estava tão contrariado pela demora de Maria que não conseguiu se concentrar nos passes mais simples. O terceiro compromisso era o de todas as noites num café-concerto das Ramblas, onde atuou sem inspiração para um grupo de turistas franceses que não conseguiram acreditar no que viam porque se negavam a crer na magia. Depois de cada representação telefonou para casa, e esperou sem ilusões que Maria atendesse. Na última já não pôde reprimir a inquietação de que algo de mau havia acontecido. De volta para casa na caminhonete adaptada para as funções públicas viu o esplendor da primavera nas palmeiras do Paseo de Gracia, e foi estremecido pelo pensamento funesto de como poderia ser a cidade sem Maria. A última esperança se desvaneceu quando encontrou seu recado ainda pregado na porta. Estava tão contrariado que esqueceu de dar comida ao gato.
Só agora, ao escrever, percebo que nunca soube como era o nome dele na realidade, porque em Barcelona só o conhecíamos por seu nome profissional: o Mago Saturno. Era um homem de gênio esquisito e com uma inabilidade social irredimível, mas o tato e a graça que nele faziam falta sobravam em Maria. Era ela quem o guiava pela mão nesta comunidade de grandes mistérios, onde ninguém teria a idéia de ligar para alguém depois da meia-noite perguntando pela própria mulher. Saturno havia feito isso assim quando chegou e não queria recordar. Por isso, naquela noite conformou-se com telefonar para Saragoça, onde uma avó meio adormecida respondeu sem alarma que Maria havia partido depois do almoço. Não dormiu mais de uma hora ao amanhecer. Teve um sonho de pântano, no qual viu Maria com um vestido de noiva em farrapos e salpicada de sangue, e despertou com a certeza pavorosa de que havia tornado a deixá-lo sozinho, e agora para sempre, num vasto mundo sem ela.
Havia feito isso três vezes com três homens diferentes, ele inclusive, nos últimos cinco anos. Havia abandonado-o na Cidade do México seis meses depois de conhecê-lo, quando agonizavam de felicidade com um amor demente num quarto do bairro Anzures. Certa manhã, Maria não amanheceu em casa depois de uma noite de abusos inconfessáveis. Deixou tudo que era dela, inclusive a aliança de seu casamento anterior, e uma carta na qual dizia que não era capaz de sobreviver ao tormento daquele amor desatinado. Saturno pensou que havia voltado ao seu primeiro marido, um condiscípulo da escola secundária com quem se casou às escondidas sendo menor de idade, e a quem abandonou por outro depois de dois anos sem amor. Mas não: havia regressado à casa de seus pais, e lá foi Saturno buscá-la a qualquer preço. Rogou sem condições, prometeu muito mais do que estava decidido a cumprir, mas tropeçou com uma determinação invencível. “Existem amores curtos e amores longos”, disse ela. E concluiu sem misericórdia: “Este foi curto.” Ele rendeu-se diante de seu rigor. No entanto, certa madrugada de um dia de Todos os Santos, ao voltar para o seu quarto de órfão depois de quase um ano de esquecimento, encontrou-a dormindo no sofá da sala com a coroa de flores de laranjeira e a longa cauda de espuma das noivas virgens. Maria contou a verdade. O novo noivo, viúvo, sem filhos, com a vida resolvida e a disposição de se casar para sempre na igreja católica, havia deixado-a vestida de noiva esperando no altar. Seus pais decidiram fazer a festa do mesmo jeito. Ela acompanhou a brincadeira. Dançou, cantou com os mariachis, abusou da bebida, e num terrível estado de remorsos tardios foi procurar Saturno à meia-noite. Ele não estava em casa, mas encontrou as chaves no vaso de flores do corredor, onde sempre as escondera. Daquela vez, foi ela quem se rendeu sem condições. “E agora até quando?”, ele perguntou. Ela respondeu com um verso de Vinicius de Moraes: “O amor é eterno enquanto dura.”, Dois anos depois, continuava sendo eterno.
Maria pareceu amadurecer. Renunciou a seus sonhos de atriz e consagrou-se a ele, tanto no ofício como na cama. No fim do ano anterior haviam assistido a um congresso de magos em Perpignan, e na volta conheceram Barcelona. Gostaram tanto que estavam ali fazia oito meses, e iam tão bem que haviam comprado um apartamento no bairro muito catalão de Horta, ruidoso e sem porteiro, mas com espaço de sobra para cinco filhos. Havia sido a felicidade possível, até o fim de semana em que ela alugou um automóvel e foi visitar seus parentes de Saragoça com a promessa de voltar às sete da noite da segunda. Ao amanhecer da quinta ainda não dera sinais de vida. Na segunda-feira da semana seguinte a companhia de seguros do automóvel alugado telefonou para perguntar por Maria. “Não sei nada”, disse Saturno. “Procurem em Saragoça.”, Desligou.
Uma semana depois um guarda civil foi à sua casa com a notícia de que haviam achado o automóvel depenado, num atalho perto de Cádiz, a novecentos quilômetros do lugar em que Maria o abandonou. O policial queria saber se ela tinha mais detalhes do roubo. Saturno estava dando comida ao gato, e olhou-o apenas para dizer sem mais rodeios que não perdessem tempo, pois sua mulher havia fugido de casa e ele não sabia com quem ou para onde. Era tamanha sua convicção que o policial sentiu-se incomodado e pediu perdão pelas perguntas. O caso foi declarado encerrado.
O receio de que Maria pudesse ir embora outra vez havia assaltado Saturno na Páscoa em Cadaqués, onde Rosa Regàs os havia convidado para velejar. Estávamos no Marítim, o populoso e sórdido bar da gauche divine no crepúsculo do franquismo, em volta de uma daquelas mesas de ferro com cadeiras de ferro onde só cabiam a duras penas seis e sentavam vinte. Depois de esgotar o segundo maço de cigarros da jornada Maria percebeu que não tinha fósforos. Um braço esquálido de pelos viris com uma pulseira de bronze romano abriu caminho através do tumulto da mesa e ofereceu-lhe fogo. Ela agradeceu sem olhar quem era, mas o Mago Saturno viu. Era um adolescente ósseo e lampinho, de uma palidez de morto e um rabo-de-cavalo de cabelos muito negros que chegavam até a sua cintura. As janelas do bar mal suportavam a fúria da tramontana da primavera, mas ele ia vestido com uma espécie de pijama de usar na rua, de algodão cru, e umas tamancas de lavrador. Não tornaram a vê-lo até o fim do outono, numa pensão de mariscos de La Barceloneta, com o mesmo conjunto de saraça ordinária e uma longa trança em vez do rabo-de-cavalo. Cumprimentou-os como se fossem velhos amigos, e pelo modo com que beijou Maria, e pelo modo com que ela correspondeu, Saturno foi fulminado pela suspeita de que haviam andado se encontrando escondidos. Dias depois encontrou por acaso um nome novo e um número de telefone escritos na caderneta doméstica, e a inclemente lucidez dos ciúmes revelou-lhe de quem eram. O prontuário social do intruso acabou de liquidá-lo: 22 anos, filho único de ricos, decorador de vitrines da moda, com uma fama fácil de bissexual e um prestígio bem fundamentado como consolador de aluguel de mulheres casadas. Mas conseguiu superar tudo até a noite em que Maria não voltou para casa. Então começou a telefonar para ele todos os dias, primeiro a cada duas ou três horas, das seis da manhã até a madrugada seguinte, e depois cada vez que encontrava um telefone. O fato de que ninguém atendesse aumentava o seu martírio. No quarto dia atendeu uma andaluza, que só ia fazer a faxina. “O sinhôzinho não está”, disse, com um jeito vago o suficiente para enlouquecê-lo. Saturno não resistiu à tentação de perguntar se por acaso a senhorita Maria não estava.
- Aqui não mora nenhuma Maria - disse a mulher. - O patrão é solteiro.
- Já sei disso - respondeu ele. - Não mora mas vai às vezes, não é?
A mulher se enfureceu.
- Mas quem está falando, porra?
Saturno desligou. A negativa da mulher pareceu-lhe uma confirmação a mais do que para ele já não era suspeita, era uma certeza ardente. Perdeu o controle. Nos dias seguintes telefonou em ordem alfabética para todos os conhecidos de Barcelona. Ninguém informou nada, mas cada telefonema agravou sua infelicidade, porque seus delírios de ciúmes já eram célebres entre os madrugadores impenitentes da gauche divine, que respondiam com qualquer piada que o fizesse sofrer. Só então compreendeu até que ponto estava sozinho naquela cidade bela, lunática e impenetrável, na qual jamais seria feliz. Pela madrugada, depois de dar comida ao gato, apertou o coração para não morrer, e tomou a determinação de esquecer Maria.
Depois de dois meses, Maria ainda não havia se adaptado à vida no sanatório. Sobrevivia mal e mal, comendo quase nada daquela pitança de cárcere com os talheres acorrentados à mesona de madeira bruta, e os olhos fixos na litografia do general Francisco Franco que presidia o lúgubre refeitório medieval. No começo resistia às horas canônicas com sua rotina palerma de matinas, laudes, vésperas, e a outros ofícios da igreja que ocupavam a maior parte do tempo. Negava-se a jogar bola no pátio do recreio e a trabalhar na oficina de flores artificiais que um grupo de reclusas mantinha com uma diligência frenética. Mas na terceira semana foi incorporando-se pouco a pouco à vida do claustro. Afinal, diziam os médicos, todas começavam assim, e cedo ou tarde acabavam integrando-se na comunidade. A falta de cigarros, resolvida nos primeiros dias por uma vigilante que os vendia a preço de ouro, tornou a atormentá-la quando acabou o pouco dinheiro que trouxera. Consolou-se depois com os cigarros de papel de jornal que algumas reclusas fabricavam com as guimbas recolhidas no lixo, pois a obsessão de fumar havia chegado a ser tão intensa quanto a do telefone. As pesetas exíguas que ganhou mais tarde fabricando flores artificiais permitiram a ela um alívio efêmero. O mais duro era a solidão das noites. Muitas reclusas permaneciam despertas na penumbra, como ela, mas sem se atrever a nada, pois a vigilante noturna velava também no portão fechado com corrente e cadeado. Certa noite, porém, abrumada pela tristeza, María perguntou com voz suficiente para que sua vizinha de cama escutasse:
- Aonde estamos?
A voz grave e lúcida da vizinha respondeu:
- Nas profundas do inferno.
- Dizem que esta terra é de mouros - disse outra voz distante que ressoou no dormitório inteiro.
- E deve ser mesmo, porque no verão, quando há lua, ouvem-se cães ladrando para o mar.
Ouviu-se uma corrente nas argolas como uma âncora de galeão, e a porta se abriu. A cérbera, o único ser que parecia vivo no silêncio instantâneo começou a passear de um extremo a outro do dormitório. Maria se assustou, e só ela sabia por quê.
Desde sua primeira semana no sanatório, a vigilante noturna lhe havia proposto sem rodeios que dormisse com ela no quarto de guarda. Começou com um tom de negócio concreto: troca de amor por cigarros, por chocolates, pelo que fosse. “Você vai ter de tudo”, dizia, trêmula. “Você vai ser a rainha.”, Diante da recusa de Maria, a guarda mudou de método. Deixava papeizinhos de amor debaixo do travesseiro, nos bolsos do roupão, nos lugares menos imaginados. Eram mensagens de uma aflição dilacerante capaz de estremecer as pedras. Fazia mais de um mês que parecia resignada à derrota, na noite em que ocorreu o incidente no dormitório. Quando se convenceu de que todas as reclusas dormiam, a guarda aproximou-se da cama de Maria, e murmurou em seu ouvido todo tipo de obscenidades ternas, enquanto beijava sua cara, o pescoço tenso de terror, os braços tesos, as pernas exaustas. No fim, achando talvez que a paralisia de Maria não era de medo e sim de complacência, atreveu-se a ir mais longe. Maria deu-lhe então um golpe com as costas da mão que mandou-a contra a cama vizinha. A guarda levantou-se furibunda no meio do escândalo das reclusas alvoroçadas.
- Filha da puta - gritou. - Vamos apodrecer juntas neste chiqueiro até que você fique louca por mim.
O verão chegou sem se anunciar no primeiro domingo de junho, e foi preciso tomar medidas de emergência, porque as reclusas sufocadas começavam a tirar durante a missa as batinas de lã.
Maria assistiu divertida ao espetáculo das enfermas peladas que as guardas tocavam pelas naves da capela como se fossem galinhas cegas. No meio da confusão, tratou de se proteger dos golpes perdidos, e sem saber como encontrou-se sozinha no escritório abandonado, e com um telefone que tocava sem cessar com uma campainha de súplica.
Maria respondeu sem pensar, e ouviu uma voz distante e sorridente que se distraía imitando o serviço de hora certa:
- São quarenta e cinco horas, noventa e dois minutos e cento e sete segundos.
- Veado - disse Maria.
Desligou divertida. Já ia embora, quando percebeu que estava deixando escapar uma ocasião irrepetível. Então discou seis números, com tanta tensão e tanta pressa, que não teve certeza de ser o número de sua casa. Esperou com o coração na boca, ouviu a campainha familiar com seu tom ávido e triste, uma vez, duas vezes, três vezes, e ouviu enfim a voz do homem de sua vida na casa sem ela.
- Alô?
Precisou esperar que passasse a bola de lágrimas que se formou na sua garganta.
- Coelho, minha vida - suspirou.
As lágrimas a venceram. Do outro lado da linha houve um breve silêncio de espanto, e a voz ensandecida pelos ciúmes cuspiu a palavra:
- Puta!
E desligou.
Naquela noite, num ataque frenético, Maria tirou da parede do refeitório a litografia do generalíssimo, arrojou-a com todas as suas forças contra o vitral do jardim, e desmoronou banhada em sangue. Ainda lhe sobrou raiva para enfrentar na porrada as guardas que tentaram dominá-la, sem conseguir, até que viu Herculina plantada no vão da porta, com os braços cruzados, olhando para ela. Rendeu-se. Ainda assim, foi arrastada até o pavilhão das loucas perigosas, foi aniquilada com uma mangueira de água gelada, e injetaram terebintina em suas pernas. Impedida de caminhar por causa da inflamação provocada, Maria percebeu que não havia nada no mundo que não fosse capaz de fazer para escapar daquele inferno. Na semana seguinte, já de regresso ao dormitório comum, levantou-se na ponta dos pés e bateu na cela da guarda da noite.
O preço de Maria, exigido de antemão, foi levar um recado ao seu marido. A guarda aceitou, sempre que o trato fosse mantido no mais absoluto segredo. E apontou-lhe com um dedo inexorável.
- Se alguma vez alguém souber, você morre.
Desta forma o Mago Saturno foi parar no sanatório de loucas no sábado seguinte, com a caminhonete de circo preparada para celebrar o regresso de Maria. O diretor o recebeu em pessoa no seu escritório, tão limpo e arrumado quanto um barco de guerra, e fez um relatório afetuoso sobre o estado de sua esposa. Ninguém sabia de onde chegou, nem como nem quando, pois a primeira informação sobre sua entrada era o registro oficial ditado por ele mesmo quando a entrevistou. Uma investigação iniciada no mesmo dia não dera em nada. Porém, o que mais intrigava o diretor era como Saturno soube do paradeiro de sua esposa. Saturno protegeu a guarda.
- A companhia de seguros do automóvel me informou - disse.
O diretor concordou satisfeito. “Não sei como o seguro faz para saber tudo”, disse. Deu uma olhada no expediente que tinha sobre sua escrivaninha de asceta, e concluiu:
- A única certeza é que seu estado é grave.
Estava disposto a autorizar uma visita com as devidas precauções se o Mago Saturno prometesse, pelo bem de sua esposa, restringir-se à conduta que ele indicasse. Sobretudo na maneira de tratá-la, para evitar que recaísse em seus acessos de fúria cada vez mais freqüentes e perigosos.
- Que esquisito - disse Saturno. - Sempre foi de gênio forte, mas de muito domínio.
O médico fez um gesto de sábio. “Há condutas que permanecem latentes durante muitos anos, e um dia explodem”, disse. “Porém, é uma sorte que tenha caído aqui, porque somos especialistas em casos que requerem mão forte.” No final, fez uma advertência sobre a estranha obsessão de Maria pelos telefones.
- Deixe-a falar - disse.
- Fique tranqüilo, doutor - disse Saturno com ar alegre. - É a minha especialidade.
A sala de visitas, mistura de cárcere e confessionário, era o antigo locutório do convento. A entrada de Saturno não foi a explosão de júbilo que ambos poderiam esperar. Maria estava de pé no centro do salão, junto a uma mesinha com duas cadeiras e um vaso sem flores. Era evidente que estava pronta para ir embora, com seu lamentável casaco cor de morango e sapatos sórdidos que havia ganho de esmola. Num canto, quase invisível, estava Herculina com os braços cruzados. Maria não se moveu ao ver o marido entrar nem mostrou emoção alguma na cara ainda salpicada pelos estragos do vitral. Deram um beijo de rotina.
- Como você se sente? - perguntou ele.
- Feliz por você enfim ter vindo, coelho - disse ela. - Isto foi a morte.
Não tiveram tempo de sentar-se. Afogando-se em lágrimas, Maria contou as misérias do claustro, a barbárie das guardas, a comida de cachorro, as noites intermináveis sem fechar os olhos de terror.
- Já nem sei há quantos dias estou aqui, ou meses ou anos, mas sei que cada um foi pior que o outro - disse, e suspirou com a alma. - Acho que nunca voltarei a ser a mesma.
- Agora tudo isso passou - disse ele, acariciando com os dedos as cicatrizes recentes de sua cara. - Eu continuarei a vir todos os sábados. E até mais, se o diretor permitir. Você vai ver como tudo dará certo.
Ela fixou nos olhos dele seus olhos aterrorizados. Saturno tentou suas artes de salão. Contou, no tom pueril das grandes mentiras, uma versão adocicada dos prognósticos do médico. “Em resumo”, concluiu, “ainda faltam alguns dias para você estar recuperada de vez.”, Maria entendeu a verdade.
- Por Deus, coelho! - disse, atônita. - Não me diga que você também acha que estou louca!
- Nem pense nisso! - disse ele, tratando de rir. - Acontece que será muito mais conveniente para todos que você fique aqui algum tempo. Em melhores condições, é claro.
- Mas se eu já te disse que só vim telefonar! - falou Maria.
Ele não soube como reagir à obsessão temível. Olhou para Herculina. Ela aproveitou a olhada para indicar em seu relógio de pulso que estava na hora de terminar a visita. Maria interceptou o sinal, olhou para trás, e viu Herculina na tensão do assalto iminente. Então agarrou-se no pescoço do marido gritando como uma verdadeira louca. Ele safou-se com todo o amor que pôde, e deixou-a à mercê de Herculina, que saltou sobre suas costas. Sem dar-lhe tempo para reagir, aplicou em Maria uma chave com a mão esquerda, passou o outro braço de ferro em volta de seu pescoço, e gritou para o Mago Saturno:
- Vá embora!
Saturno fugiu apavorado. Ainda assim, no sábado seguinte, já reposto do espanto da visita, voltou ao sanatório com o gato vestido como ele: a malha vermelha e amarela do grande Leopardo, o chapéu de copa e uma capa de volta e meia que parecia feita para voar. Entrou com a caminhonete de feira até o pátio do claustro, e ali fez uma função prodigiosa de quase três horas que todas as reclusas desfrutaram dos balcões, com gritos discordantes e ovações inoportunas. Estavam todas, menos Maria, que não só se negou a receber o marido, como sequer quis vê-lo dos balcões. Saturno sentiu-se ferido de morte.
- É uma reação típica - consolou o diretor. - Já passa.
Mas não passou nunca. Depois de tentar muitas vezes ver Maria de novo, Saturno fez o impossível para que recebesse uma carta, mas foi inútil. Quatro vezes devolveu-a fechada e sem comentários. Saturno desistiu, mas continuou deixando na portaria do hospital as rações de cigarros, sem ao menos saber se chegavam a Maria, até que a realidade o venceu. Nunca mais se soube dele, exceto que tornou a se casar e que voltou ao seu país. Antes de ir embora de Barcelona deixou o gato meio morto de fome com uma namoradinha casual, que além disso se comprometeu a continuar levando cigarros para Maria. Mas também ela desapareceu.
Rosa Regas recordava ter visto a moça no Corte Inglês, há uns doze anos, com a cabeça rapada e a túnica alaranjada de alguma seita oriental, grávida até não poder mais. Ela contou-lhe que continuara levando cigarros para Maria, sempre que pôde, e resolvendo para ela algumas urgências imprevistas, até o dia em que só encontrou os escombros do hospital, demolido como uma lembrança ruim daqueles tempos ingratos. Maria pareceu-lhe muito lúcida na última vez em que a viu, um pouco acima do peso e contente com a paz do claustro. Naquele dia, levou-lhe também o gato, porque havia acabado o dinheiro que Saturno deixou para a comida.
Abril de 1978.
Fonte: http://conselheiroacacio.wordpress.com/2008/09/27/so-vim-telefonar-g-g-marquez/